"DITO
COTÔCO OU DITO BILAU:
OS FIGOS,
AS MANGAS E SEU QUINTAL".
Seria ele o Benedito? Lembro-me de que era ele um
curioso velhinho de baixa estatura e que morava sozinho numa humilde casa
localizada próxima à Igreja do Rosário.
Aliás, não vivia ele totalmente só, pois tinha por
companheiro constante um cachorro peludo de cor amarelada com mesclas
escurecidas. Ninguém o visitava e seu casebre estava sempre com portas e
janelas fechadas. O quintal caprichosamente cercado por fortificada cerca de
varas buscadas no mato, e por ele mesmo construída, era inexpugnável até mesmo
para o mais ousado dos meninos de toda a região, pois ficava essa área sempre
sob a vigilância do dono ou, na ausência deste, pelo fiel
"lobo-guará".
Além das figueiras, cujos frutos ele fornecia com
rigorosa exclusividade para minha bisavó Idalina Sena, com os quais ela
preparava as mais lindas e deliciosas compoteiras, sucesso absoluto nas mesas
de leilões de todas as festas, havia também, dois imensos pés de manga-rosa que
lá no alto, eram seus galhos o paraíso dos sanhaços, sofrês e nuvens de
jandaias e periquitos que ali encontravam o mais farto e predileto banquete.
O velho, a quem todos conhecíamos como "Dito
Cotôco", vivia completamente isolado e a ninguém incomodava nem mesmo para
pedir o menor favor a qualquer um de seus vizinhos. A sua casa, sempre escura,
tinha seu interior bisbilhotado por algum curioso somente quando o Velho
entreabria uma das folhas da porta principal, ao sair para o mato ou ao rio em
cujas oportunidades se podia notar a completa ausência de móveis e a
predominância das teias de aranha entre os diversos feixes de lenha e de
garranchos que ele buscava nas chapadas, tudo ali armazenado, precavidamente
para serem usadas durante o tempo das chuvas ou senão, eventualmente serem
barganhados por algum alimento ou por algum utensílio de que necessitasse.
A casa de Dito Cotôco era um verdadeiro zoológico,
o paraíso das aranhas, ratos, lagartixas, calangos e camaleões. Gatos não
havia, pois o "Lobo", sempre vigilante, não os perdoava.
As árvores do quintal eram habitadas pelos
sanhaços, fleuras, sabiás, sofrês e rolinhas em profusão, as quais, nas nossas
travessuras, capturávamos como troféus, em nossas arapucas, ou que, nos
guisados que fazíamos, juntos de nossas amadas “comadres”, transformávamos em
deliciosas farofas.
Muito se especulava sobre o comportamento estanho
daquele misantropo e suas manias, inclusive, se ele, realmente, alimentava-se
de carne daqueles gatos incautos que dali se aproximavam e, a bem da verdade,
era até de se suspeitar disso, como suposta verdade, diante da constatação de
que a população bichana, naquelas imediações, de fato, por coincidência ou não,
revelava-se cada vez mais diminuída, sempre minguada e reduzida se
comparada ao recenseamento que se fizesse nas demais ruas da cidade.
Dito Cotôco, ao que parece, em razão de seus
hábitos alimentares sofria, sim, era de escorbuto, pois tinha lábios e
pálpebras bastante vermelhos o que lhe emprestavam um aspecto lúgubre e
assustador, parecendo ser um dos lobisomens descritos nos causos de Zé Egídio,
e talvez estivesse aí a razão de viver às escuras e distante das pessoas,
procurando não se aproximar delas ou esconder-se sempre.
Era, pois, além de um solitário com hábitos tão
extravagantes, uma figura exótica que despertava as mais diversas curiosidades
no imaginário dos vizinhos e principalmente na especulação da meninada que
tanto apreciava os mistérios e as aventuras.
A casa em que morávamos ficava bem próxima à do
Dito Cotôco, o que nos permitia, do alto da varanda que existia pelos fundos,
acompanhar suas movimentações, quando cuidava das plantas, aguando as roseiras,
colhendo os figos e as mangas caídas pelo chão e que eram recolhidas nos
balaios de bambu para depois serem destinadas aos porcos do vizinho Antônio
Domingos, antigo carcereiro, uma das pouquíssimas pessoas com o qual ele se
comunicava, através da dita cerca de varas, sobre a qual passava o cesto
contendo as frutas. Antônio Carcereiro, por seu turno, uma pessoa popular e bondosa,
sem que o Dito Cotôco o percebesse, separava boa parte das belíssimas mangas
para serem distribuídas ao batalhão de meninos que freqüentava a porta de sua
casa, destinando aos porcos somente aquelas bastante maduras e amassadas. A não
ser assim, ninguém, além dos passarinhos e dos porcos, teria o prazer de
saboreá-las, o que seria uma grande injustiça, na nossa avaliação de meninos
que não deixavam em paz todos os outros quintais, mas àquele paraíso, por
morrermos de medo do dono, tínhamos que nos contentar apenas de apreciar de
longe, atraindo com chamas e com pios, a cobiçada passarada.
Esse grande medo, que todos nós tínhamos, sem
exceção, além da cerca e do cachorro, constituía-se a principal razão de ser
aquele o único quintal sempre preservado pelos meninos aventureiros da
vizinhança.
O fato é que muitos afirmavam já ter visto o
morador daquela casa transformado em lobisomem, isto durante noites de
lua-cheia quando, junto de seu "lobo-guará", ficavam ambos, horas e
horas, uivando lugubremente como se estivessem enfeitiçados pelo brilhante e
romântico satélite da terra.
Outro fato que também era motivo de muita
curiosidade e que impunha pavor na criançada. era que ele encantava serpentes
para delas também se servir como alimento, razão pela qual tinha os lábios e os
olhos avermelhados.
Hoje se tornou moderno e chique o hábito de se
comer rãs, prato muito apreciado em badalados restaurantes, iguaria que nós
chamávamos de jia. Mas, já naquela época, o velho Dito Biláu não perdoava nem
mesmo as rãs e as pererecas, que eram abundantes durante as chuvas, quando ele
as recolhia, nos balaios, e as levava para dentro de casa. Também as tanajuras,
os grilos e gafanhotos eram por ele apreciados em sua exótica dieta.
Afora essas excentricidades, era ele pacato e
alheio a tudo e a todos e também não se incomodava com a condição de desprezo a
que ele próprio se submetia.
Certa vez minha bisavó estava de passagem em nossa
casa e pediu-me para acompanhá-la até à casa do estranho vizinho para
comprar-lhes os citados figos, pois precisava de alguém para auxiliá-la,
levando alguns objetos e também por estar com medo do cachorro que existia ali.
Para mim, apesar dos temores, era uma boa oportunidade de satisfazer às minhas antigas
curiosidades em relação aqueles segredos que a meninada toda almeja descobrir.
Foi assim que nós seguimos até à casa, onde minha
bisavó, depois de empurrar a porta que estava apenas encerrada, segurou-me pela
mão e fomos caminhando, com certo receio, por um escuro corredor, entre as
pilhas de lenha em feixes, até chegarmos à cozinha onde ele já estava
esperando, já com os figos numa cesta, a qual foi imediatamente entregue a ela,
silenciosamente, sem qualquer gesto de cumprimento ou palavras, tendo minha
bisavó ordenado que eu deixasse sobre um traste de móvel o bornal de lona em
que eu trazia, conforme eu fiquei sabendo depois, alimentos como farinha de
milho, toucinho, carne-seca, café torrado, rapadura, além de rapé, fumo de rolo
e uma garrafinha de cachaça, o que me esclareceu a razão de tanto peso daquele
volume, cujo conteúdo só fiquei sabendo através da minha mãe, que o preparava
sempre, sendo que, a partir de então, ficou em boa parte esclarecida a origem
do sustento daquele pobre vizinho, e também, a mim, possibilitou-se que eu
passasse freqüentar sem receio àquele local que antes era proibitivo e tão
temido, quando toda a molecada passou a ficar curiosa e espantada em razão
daquela minha repentina "coragem" de assim proceder.
Passaram-se tempos e Dito Cotôco, que comigo passou
a se mostrar amistoso e simpático, ia-me revelando seus segredos, inclusive o
de que era ele próprio que incentivava aos amigos Antônio Domingos e Zé Egídio,
que muito gostavam de patacoadas, pilhérias e brincadeiras, aos quais ele mesmo
solicitava como um favor, o de divulgar a fama que lhe era atribuída para assim
permanecer temido, bem longe de todos como era de seu gosto e desejo, alheio
dos olhares curiosos daqueles que o temiam.
E assim continuou, não para mim que já sabia de
tudo, até o dia em que fora localizado morto, dentro do mato próximo ao
campinho de futebol, no final da rua do Pequi, aonde ele ia diariamente
recolher a lenha que se amontoava por toda a sua casa.
Perdi um amigo bissexto e minha bisavó perdeu seu
predileto fornecedor de figos, na condição de exclusivo, que na verdade, era
apenas um sublime pretexto encontrado para que ela tivesse acesso a ele, como
meio de se minimizarem as carências daquele pobre ser humano, genioso e
neurastênico sim, mas tão frágil e esquecido que não poderia continuar
abandonado por todos. E era assim, o formato de uma solidariedade silenciosa e
benfazeja que existia no coração daquela anciã cujo capricho era incentivado
por outros dois corações bondosos: os de meus pais, que de certa forma
já me envolviam e se utilizavam dessa estratégia para me ingressar na trilha de
participação em tantos outros gestos de filantropia que praticavam, sem
qualquer alarde ou publicidade, exemplo no qual, ainda hoje, procuro orientar
com os impulsos de meu coração, este frágil órgão que reluto em não deixar
contaminar-se pela dura realidade, mas que tende a deixar-se levar pelo mundo
tão repleto de mazelas e tão carente de soluções para tantos outros Ditos, os
quais existem por aí, sem qualquer chance de viver ou de morrer com dignidade e
respeito, mesmo na vigência de leis como o "Estatuto do Idoso" que há
pouco fora homologado pelo Governo Federal mas que carece de ser observado,
difundido e respeitado.
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