sábado, 26 de agosto de 2017

CASA DA VOVÓ IDALINA SENA





A INCRÍVEL CASA DA VOVÓ IDALINA


Na Casinha da Vovó



Ainda sonho contigo,
oh, minha hilária vovó,
Fazendo doces de figo
Preparando o pão-de-ló.

E a  Mãe-Ana, a Pepeta,
Cheirando o pó de rapé,
Enquanto a Tia Riqueta
Sorvia seu amargo café,

Numa estranha etiqueta
Em um nigérrimo cuité
E quem não fazia careta
Certamente era um lelé!

E do caldeirão borbulhante
Lembra-me aroma do feijão
Numa fornalha flamejante,
Nela um fumegante buião!

E a couve, carne de porco,
Arroz pilado com açafrão
Sobrava, nem um pouco,
Da traíra, ou piau, o pirão!

Do quibebe, das fressuras,
Da geleia e do requeijão,
Com  farinha  e rapadura,
ou do mascavo com limão!

E, lá no quarto, Santo Antônio,
Santo querido de sua devoção,
Guarde esse lindo patrimônio:
Minha vovó, aqui, no coração!

* * * * * * * * * * * * * * * *



A casa da vovó Idalina[1], na Rua do Curral[2], era uma construção geminada com a residência da família do Mestre João Benedito[3], e ambas tinham, em comum, um único e enorme telhado, que era aparente e bem acima das grossas paredes, desprovido – por desnecessários naquela singular estrutura em asna[4] - de cumeeira e de ripas, sendo que as telhas enormes que as guarneciam, e que eram feitas de barro queimado, assentavam-se diretamente sobre os grossos caibros cerrados em madeira de lei.
Era uma casa muito antiga, talvez uma das poucas moradias remanescentes da época da fundação da cidade, de um tempo quando se usava paredes com altíssimo pé direito, pesadas portas com aldravas e tendo apenas uma porta e uma janela pela frente. Depois da sala de entrada, guarnecida de um único aparador com quatro cadeirinhas articuladas, havia alguns retratos antigos pendurados na parede caiada a alvaiade[5] e, deste cômodo, passava-se a um corredor ladeado por um comprido e luzidio banco, o qual servia a um só tempo de arca e de cama, além de uma cômoda grande, com chaves, onde eram acomodadas as roupas brancas, os cobertores e os poucos guardados da casa. Fazia-se, também neste cômodo, a ligação da sala à pequena varanda, tendo-se ainda o acesso a um quarto escuro, sem qualquer janela, que invariavelmente permanecia fechado, suscitando-me curiosidades e fantasias. Na varanda, onde havia uma enorme mesa e bancos de madeira, ficava um armário envidraçado, do tipo guarda-louças, que exibia enormes compoteiras e licoreiras de vidros coloridos contendo as iguarias, a principal razão da minha freqüente visita àquele casebre sombrio e silencioso. A esta dependência, ligava-se a cozinha de fogão de lenha, tendo ainda uma pequena despensa com as prateleiras e o quarto de dormir de minha bisavó, onde existia como únicos móveis um catre de madeira com tiras entrecruzadas, de couro-cru, e sobre esta cama, afixado à altura do meio oitão, um oratório com imagens sacras donde pontificava um vistoso e paramentado Santo Antônio, em madeira com policromia, trazendo em seus braços o divino afilhado, local onde a vovó escondia seus “cobres” [6] e suas poucas joias.
A vovó, no meu tempo de criança, quando ela já passava dos oitenta, tinha, como forte motivação de sua vida, o carinho de uma numerosa família, a dedicação do seu neto Rui Miranda, a presença sempre amiga e solidária de um definido grupo de amigos e, naturalmente com maior apreço, como seu verdadeiro “rei e senhor”, o idolatrado santo casamenteiro ao qual jamais admitia faltar-lhe muitas flores, velas e orações.
Eu me incluo, com toda modéstia, entre o círculo daqueles a quem ela dedicava seu particular agrado, pois nesta condição, era evidente seu tratamento especial, bem diferente do que ela dispensava à maioria dos parentes mais jovens de então, certamente devido à compreensão e paciência que procura ter para com ela, não me ligando muito a suas esquisitices, algumas até desconcertantes, acatando com naturalidade os seus costumes, muitos que às vezes até agrediam os padrões da época e se chocavam com a rígida moralidade, que mesmo de fachada, ainda hoje se procura impingir aos familiares.
Com ela não tinha tempo ruim, meios termos e papas-na-língua, pois não se intimidava diante de nada e não levava desaforos para casa. Sua vitalidade era invejável e sua franqueza temível, não se escapando de sua ira os moralistas de ocasião, as pessoas que não lhe eram simpáticas e muitas a quem, com frequência mandava “ir a sebo” ou então, simplesmente, a “beber merda”. 
Desde que a minha tia-avó Candinha Sena falecera, justamente por causa do parto do único filho (Rui[7]), fato que já havia muito tempo transcorrido, a saudosa Sadalina preferiu dividir sua morada apenas com aquele seu neto órfão e, muito tempo depois, quando este já estava adulto e resolveu ganhar o mundo e partiu de mala e cuia, ela com sua dor e saudades passou a viver sozinha e não aceitava a companhia nem mesmo de ajudantes ou empregados domésticos, sendo ela mesma que cuidava pessoalmente de todos os afazeres e só se recorria aos parentes para o suprimento do muito pouco que ela carecia para atender sua rotina diária.
E era ela própria que comparecia, nos dias marcados na “folhinha-de-mariana” [8], para recolher na casa de cada parente aquilo que cada um ficou escalado de fornecê-la: era assim que lá na nossa casa ela ia buscar o grosso do seu consumo [9] , isto porque meu pai era vendeiro [10] e mantinha, a débito dela, uma caderneta onde se lançava item por item, cujo pagamento, ao final de certo tempo, ela procurava acertar a seu modo e com a mesada em dinheiro que religiosamente lhe enviava o neto Rui, a essa altura, já muito bem encaminhado como funcionário público, de lá de uma das diversas cidades por onde residiu e exerceu suas funções como coletor estadual.
O entronado e festejado Santo Antônio, a cada dia, tornava-se mais forte e presente na vida da minha fervorosa e irreverente bisavó, sendo ele o motivo maior de suas frequentes missas, terços, novenas e festas.
Pelo menos uma vez ao mês eram convocadas as inúmeras amigas dela, um verdadeiro batalhão de choque composto por Pepeta, siá Riqueta, Mariana Crochê, Celina de Gabriel, Geralda de Panta, Fausta, Ana Félix, Nenega, Burrucha, Adelaide de Juca Lopes, Aninha de Chico, Ana de Sabino, Adélia Araújo, Teodora, Breu e tantas outras da mesma era, mas de diferentes classes e condições, para enfrentarem a reza do infindável terço, após o qual, invariavelmente, degustavam-se, além das compotas e licores, razoável quantidade da boa cangibrina e gordurosos petiscos fartamente servidos para aquela seleta confraria de vetustas damas que se esbaldavam, ao largo do zelo pelas dietas e das restrições cabíveis àquelas bem urdidas extravagâncias.
Além dessas estroinices, cotizava-se entre elas – sendo a fidelíssima Siá’Riqueta a diligente tesoureira – uma caixinha para manter o “Monte Calvário” [11] , um compromisso que consistia em remeter, periodicamente, ao Padre Victor da Radio Aparecida, as espórtulas que acreditavam serem necessárias para a salvação de suas piedosas almas. E esta seria uma providência até muito louvável, considerando-se a sagrada finalidade, se fosse de fato rigorosamente observada, pois ocorria sempre delas apelarem à milagrosa economia para o custeio de gastos extras, na organização dos inofensivos convescotes e outras pândegas.
Certa vez causara reboliço entre os parentes, que foram acordados no meio da madrugada, com a notícia de que acontecia no interior da casa da vovó alguma coisa estranha a incomodar toda a vizinhança, uma cantilena interminável com choros, soluços entrecortados de apupos e vivas, sendo que as pessoas que lá se encontravam não respondiam aos chamados nas portas e nas janelas, todas estas muito bem trancadas por dentro.
Minha mãe, a quem sempre se apelavam nestas ocasiões, em companhia de outros parentes corajosos que para lá se diligenciaram, colhidos pelo inusitado conseguiram a força de muito custo e acessando aos fundos da casa através da escalada dos muros, adentrarem-se naquele verdadeiro antro, deparando com uma cena ao mesmo tempo triste e hilária: a casa, literalmente horripilante, à meia claridade e no lusco-fusca bruxuleante de velas, com muitas flores já desarranjadas, copos e garrafas vazias espalhadas pelo chão, era um sinistro ambiente onde várias carpideiras que já estavam prostradas, tendo ao centro da sala a intrépida Sadalina, a quem velavam numa mortalha, sendo que esta que já se debatia tentado, por todos os meios, livrar-se das muitas amarras que a imobilizava dentro de um funesto caixão de pinho, todo acolchoado de cetim roxo, com galões dourados e rendas brancas, de onde lançava gritos alucinantes, de ânsia e pavor, sem com isso obter o socorro que implorava às companheiras, coadjuvantes de uma encenação que já passava dos limites e na qual se encontravam completamente desnorteadas.
Minha vovozinha, por ter ficado muito tempo amarrada, era a única - naquela inusitada cena – a que demonstrava um pouco de lucidez, incrivelmente sóbria, pois é bem certo que em velórios autênticos, mesmo hoje nas cidades do interior, a única pessoa que não bebe é a defunta, mas na presente situação, era ela a única “sacrificada” (daí a inquietação e lamúrias) pois já estava há muito tempo, devidamente “ressuscitada” e sequiosa de um bom trago de vinho. 
Passados o susto e os procedimentos necessários à recomposição do sinistro e deplorável quadro, apurou-se que a balbúrdia era um ensaio geral, no qual as participantes foram surpreendidas pelo virtuosismo ao se prepararem, invulgarmente, para o desfecho daquela triste experiência, em que a vovó vivia o papel de uma defunta, com o objetivo único de observar e conferir, pessoalmente, como seria o comportamento das amigas na hora “h” quando ocorresse, de fato, o seu falecimento e o seu próprio velório.
 E, segundo a versão delas, era um desejo muito importante que estavam realizando, tendo sido muito positiva a experiência, graças à proteção do glorioso Santo Antônio, sempre presente, que tudo via, mas continuava bem sério, firme e impassível, lá no seu imponente trono.
 Imediatamente cada uma tomou o seu rumo, muito ressabiadas, como se estivessem saindo da missa ou de um piedoso retiro espiritual onde, naturalmente, tivessem passado por uma boa reprimenda ou por um bom sermão aplicado pelo padre e confessor.
 Mas, logo-logo, outras peripécias viriam para completar a rotina.
Minhas tias e minha mãe, que eram netas da Vovó Dalina, embora zelosas, só tomavam conhecimento dos eventos – não os sacros, mas os profanos e os festins, que eram frequentes e promovidos sem anúncio prévio, somente depois deles consumados, pelo que viviam apavoradas diante dos imprevisíveis desfechos que felizmente nunca chegaram a se consumar. Naturalmente que elas não os aprovavam, de forma alguma, mas jamais se negavam de contribuir, com os ingredientes que eram ali consumidos, mesmo que o fizessem involuntariamente, levadas que eram pelos ardis e estratagemas da peralta anciã. Isto porque eram elas que se encarregavam de nada deixar faltar, além de promoverem a incrível aceitação, no mercado local, dos produtos culinários daquela esperta velhinha, iguarias incomparáveis como ambrosias, chouriços, doces de figo e tantas outras compotas que ela fornecia aos consumidores selecionados, nas casas abastadas da cidade, cuja receita em muito ajudava no seu orçamento.
Era de fato irresistível o apelo que aquelas guloseimas exerciam sobre o restrito e privilegiado grupo de consumidores. Prova maior disto é que, até nos leilões das festas tradicionais, eram suas compotas as mais disputadas, atingindo os melhores lances ao serem arrematadas como preciosas prendas.
Embora fossem vários e fartos os potes de doces que ficavam nas prateleiras da despensa, que não paravam de ser renovados, não era costume de minha bisavó cozinhar a sua própria comida dentro dos padrões daquela época, em que o trivial era, e continua sendo, o famoso feijão com arroz e eventuais misturas. Para ela o básico se consistia do conteúdo gorduroso de um caldeirão de ferro, constantemente fervente ao lado dos tachos de cobre, tudo sobre um fogão de lenha que jamais se apagava.
 Daquele caldeirão fumegante é que saia suas refeições nada frugais.
 Nele, ela misturava feijão preto com pedaços de toucinho, pé de porco, linguiças, costelas, carne seca, tripas de frango, miúdos de boi e outros pertences da culinária extravagante, aos quais se acrescentavam, no prato, condimentos apimentados, quibebes e raízes. As refeições não obedeciam a horários e eram intercaladas com o consumo de cachaça, frituras de peixes, molhos de traíras ou acompanhados de café muito amargo no qual ela adicionava farinha de milho, pedacinhos de queijo ou de requeijão envelhecido, preparando o que ela chamava de capilé. Também era comum o uso do escaldado, uma associação de farinha de mandioca com o caldo de osso que ela reservava durante a confecção de outra sua especialidade que era a geleia de mocotó.
Devido ao referido cardápio, ao qual tinha acesso todos quantos pela cozinha transitassem, minha mãe exercia severa vigilância, proibindo-me de apreciá-lo, sob o pretexto de ser prejudicial a minha saúde o que se revelava, de certa forma, em fato bastante controverso diante da boa disposição física daqueles que dele se esbaldavam, inclusive o da própria Sadalina que, apesar da idade bem avançada, jamais se queixava de perrenguiças e macacoas tão comuns a essa altura da vida, tanto é que só veio a falecer beirando seus cem anos, assim mesmo em decorrência de fraturas ósseas resultantes de uma queda sofrida no quintal de sua casa. 
De qualquer forma não me apeteceria provar nem um pouco daqueles manjares, pois mesmo não censurando os métodos pouco assépticos considerava-os um tanto quando ortodoxos. O café, obtido de grãos não selecionados, e que alem do mais eram triturados no pilão, após serem torrados em tachas de ferro e juntos de sementes de fedegoso e de aroeira, passava pela infusão, dentro de um boião [12] de barro para cocção, passando depois por um coador de pano, que nunca se lavava, e preso à trempe ou ao mancebo[13], sendo que ali permanecia em constante fervura, resultando-se um gosto intragável, para o meu paladar, mormente pelo fato de que era servido em cumbucas de coité [14] e jamais em xícaras como ocorria nas outras casas. Entretanto, às vezes tentavam-me o requeijão amolecido no melaço quente de rapadura, o pirão de peixe ou o angu-liso de milho verde com taioba e farinha de lambari torrado. E estes – como forma de se escapar da vigilância de mamãe - a minha bisavó espertamente os acondicionava dentro de um bornal estrategicamente escondido, reservado para ficar à minha disposição, debaixo de um pacato pinico virgem [15] e este, por sua vez, dentro do armarinho de cabeceiras no seu quarto de dormir.
E era assim, participando ativamente desse fantástico cotidiano, que fui levando minha incrível infância.
Toda tarde, logo após as aulas e ao sair do grupo escolar,[16] que fica logo ali nas imediações, ao retornar-me para casa, antes passava na casa da vovó para tomar-lhe as bênçãos e dela receber as melhores goiabas, figos maduros, mangas sapatinhas, laranjas baianas ou até mesmo os mimos escamoteados e com os quais nos deliciávamos, às escondidas, mas diante do olhar matreiro, conivente e paternal do sorridente Santo Antônio, lá de cima do seu lindo oratório, rodeado de tantos outros santinhos e anjos, todos compenetrados, silenciosos, olhando para todos nós, como que aprovando nossas maluquices, enquanto iam eles rezando e lambendo os seus beicinhos celestiais.
Depois daquele almoço, descansava tranquila a boa velhinha, estirada sobre o macio catre, sempre cochichando suas intermináveis ladainhas e cofiando o seu imenso rosário de contas negras, elevando silenciosamente suas devotas orações dedicadas ao santo predileto, invocando, por seu intermédio, a proteção divina para todos nós e mais ainda entregando a ele a defesa constante do seu neto distante, para que jamais se olvidasse de remeter-lhe, pela Caderneta de Poupança, a tão esperada mesada de cada mês.
De dentro do quarto, com a porta aberta para a varanda, lá de sua cama ficava ela rezando e com os olhos bem abertos, olhando lá no quintal, os sanhaços, os sofrês e os sabiás que não davam tréguas ao bem cuidado pomar onde abundavam os figos, os as goiabas, os mamões os pêssegos e as mangas, que naquele instante estavam deixando de ir para o tacho.
           
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Terminada a ruazinha do Curral, iniciava-se um caminho de terra batida que ia dar ao ribeirão do Bonsucesso. Não muito distante ficava o poço da Gameleira, onde Sinhá Ana de Sabino [17] diariamente lavava imensas trouxas de roupas. E era para lá que a vovó, ainda pela manhã, dirigia-se levando o dicumê [18] da comadre e, no alforje de lona, além do caldeirão de alumínio, a inseparável licoreira de vidro cor de rosa e em forma de mulher nua, não contendo licor, mas o líquido branco de que os passarinhos jamais fazem uso.
E era sempre sem qualquer cerimônia que ali naquele recanto do riacho, em plena luz do dia, ela se despia completamente e se banhava nas águas frias, como se fosse uma antiga iara ou, na visão de alguém que passasse na estrada da Chapada[19], até mesmo uma ondina distraída que talvez ali estivesse buscando a juventude distante e a inocência perdida ou ainda, quem sabe, a sabedoria contida no tempo e na certeza de que mais nada de bom poderia haver para se conquistar.

Aquela velhinha de longos cabelos brancos, quase sempre enrodilhados sobre a cabeça, tinha um andar curto, mas esperto, de pequenos passinhos dados com os pés descalços ou com as chinelas de pano, como se estivessem deslizando sobre uma areia escaldante. Trajava sempre um vestido longo, inteiriço, sem cintura, com vários bolsos, feito de tecido escuro e estampadinho de mimosos ramos em tons mais claros, um aconchegante xale negro de lã e o indispensável rosário em volta do pescoço. Na mão a inefável bengala, muito mais destinada aos amáveis cocorotes do que para golpear animais ou firmar-lhe os passos. Em qualquer lugar da rua eram os carros, animais ou transeuntes que tinha de se desviar dela, pois jamais se arredava da direção em que seguia, nem mesmo para urinar, quando para isto tinha de fazer, não por incontinência, mas por costume, apenas afastando as pernas e, de pé, como uma fêmea de qualquer outro animal, ali mesmo satisfazia sua premente necessidade, sem qualquer cerimônia ou constrangimento.
 Ai, porém, daquele que lhe dirigisse alguma censura, fossem criança ou adulto, pois era logo ameaçado pela indefectível bengala, com a qual ela se investia, o que ficava apenas em ameaças, pois imediatamente seguia seu caminho com os passos miúdos, aos pigarros e muxoxos.
 Tudo isto, sem lhe causar a menor afetação, era motivo de muito carinho por parte de muitos de quem ela agradava e de escândalo para os que nela viam uma jararaca perigosa ou um osso duro de se roer.
         Muito embora vivendo com parcos recursos, pois se mantinha da mesada do neto Rui e da carinhosa assistência dos parentes, pois de herança seu pai quando sumiu só lhe deixou foi um bando de desamparados, em sua casa sempre acolhia os amigos que vinham da zona rural, em dias de festa ou na busca de algum recurso na cidade, bem como não se furtava de socorrer também aos mendigos, aos mais necessitados e também aos desocupados que a ela, indistintamente, recorriam na certeza de acolhimento.
 Os doidos de rua, os mendigos, os bêbados e os idosos abandonados tinham nela verdadeira protetora e, se ela, no momento em que fosse procurada, não dispusesse do que lhe pediam, intercedia-se pelo necessitado junto de quem o pudesse, não lhe faltavam as mãos caridosas para praticar, através dela, o amparo da solidariedade e do amor fraterno.
         Dentre os muitos fatos curiosos e marcantes que ilustram a memória de minha querida bisavó, um se destaca pela imensa carga poética e como verdadeira lição a ensinar sobre a fragilidade humana e de como se deve proceder diante das mazelas e das fraquezas humanas para superar-se em momentos de dúvida e de difícil entendimento.
         Aconteceu justamente em 21 de abril de 1962, um dia de feriado, data em que também se comemorava o primeiro aniversário de Brasília, assunto que era o motivo do orgulho nacional estampado no rosto de todos.
Na loja de meu pai, onde toda noite se reunia um grupo de amigos para escutar o noticiário todos estavam muito atentos e com os ouvidos ligados ao rádio.
Repentinamente aparece ali a minha avó, chegando-se ao balcão distribuindo suas bengaladas, a torto e a direito, esbravejando contra os presentes e dizendo impropérios contra os médicos, os santos e muito mais ainda contra os políticos, a quem culpava, naquele momento, pela terrível desgraça que segundo ela se abatia sobre todos, naquele momento.
Meu pai, entre surpreso e atônico, foi o primeiro a escapulir, pois já conhecia de perto os ímpetos, os rompantes e o temperamento pouco amistoso daquela velhinha quando ficava aborrecida.
 Saiu ele correndo e minha avó no seu encalço tentando, sem sucesso, alcançá-lo com seu temido bordão.
 Serenados um pouco os ânimos, é que todos puderam se certificar da tragédia: tinha acabado de falecer a sogra de meu pai, a mãe de minha mãe, a minha avó materna Loura Sena que, por sua vez, era filha da desesperada vovó.
Foi uma consternação geral, pois embora estivesse doente já há algum tempo, tendo ficado em tratamento na capital e de onde tinha chegado a poucos dias, trazida por um avião fretado, não se esperava um desfecho, assim tão rápido como acontecera.
Minha bisavó, porém, era a mais exaltada e não aceitava, de forma alguma, aquela notícia como um fato consumado e clamava aos céus que não era justo morrer a sua filha quando o mais natural seria que ela, sendo muito mais idosa, é que deveria ter sido a escolhida para morrer.
Tentavam em vão acalmá-la, sendo que um dos presentes, que por coincidência era farmacêutico, conseguiu aplicar-lhe um eficiente calmante que logo a sedou e a fez adormecer, permitindo aos presentes se deslocarem, incontinenti, para a local onde se iniciaria o velório
 A inconformada anciã permaneceu na nossa casa e sob o efeito de medicamentos somente recobrou a consciência no outro dia, quando já havia acontecido o enterro.
 No decorrer daquele dia a mesma foi recuperando suas forças e, quando ninguém mais estava atento, ela conseguiu sair pelos fundos da casa e se dirigiu ao cemitério e ali, com as próprias mãos, pôs-se a remover a terra ainda sem compactar da cova em que estava enterrada a falecida.
 Acorreram os parentes ao local para impedi-la, lá deparando todos com um quadro dantesco, onde minha pobre bisavó, como tresloucada, arrancava de dentro do esquife destroçado, a mortalha de sua própria filha.
 Tiveram que usar da força para demovê-la daquele intento e voltaram com ela para casa, onde ela ficou sob cuidados médicos por vários dias, durante os quais ela não queria aceitar nem alimentos, nem remédios, nem ouvir qualquer conversa.
 Permaneceu assim no mais completo mutismo, só desejando também a morte.
 Para mim, que com ela mantinha muita afeição, era-me doloroso vê-la naquele lastimável estado e ao mesmo tempo entender, pois tinha então apenas 10 anos, uma idade que não me permitia ainda a compreensão dessas passagens tristes da vida.
Contudo, a minha presença perto dela, parece que foi aliviando-lhe o estado e pouco a pouco ela concordou em tomar um novo rumo e voltar à normalidade, na medida do possível.
Chegou, enfim, o dia em que todos concordaram em deixar que ela voltasse para sua casinha, convencidos pelos seus constantes apelos em retomar a rotina, o que de fato parecia ser uma saudável recuperação.
Mas, a partir de então, tudo passou a ser diferente naquela casa.
 O silêncio era completo. O fogão vivia apagado. As plantas no quintal não mais recebiam qualquer cuidado e os passarinhos, com o tempo, todos o debandaram. 
As compoteiras e licoreiras, no abandonado guarda-louças, se transformaram em refúgio das formiguinhas que aproveitavam as últimas migalhas açucaradas. Na porta da rua e na sala da casa foram-se acumulando feixes de garranchos que, por força do costume, todo dia ali depositava o doido manso Modesto (9) um dos poucos companheiros que continuou fiel a uma criatura no seu momento mais frágil, em que mais necessitava do apoio moral e da mão amiga estendida.
Aquela desolação, que a mim causava mal estar e medo, passou a exercer, também em mim, a tendência de afastamento daquele local e, sem o perceber, já não mais passava para visitar e ver a minha bisavó, nem mesmo para receber dela os antigos mimos.
 E este comportamento, que não foi percebido até mesmo tenha sido estrategicamente induzido pelos lá de casa, talvez no intuito de poupar-me de um sofrimento que não convinha e mim, naquela idade, compartilhar, um sentimento doentio e avassalador que corroia e que, se não contidos, fulminariam com os poucos dias que restavam para já abatida criatura.
E o tempo, que cicatriza todas as feridas, quase que conseguiu, por completo, fazer-me esquecer da vovozinha, até que certa manhã, descendo a rua em direção ao grupo escolar, fui abordado, com certa rispidez, pela mão áspera, suja e calosa de Modesto que me obrigou a acompanhá-lo, atônico e apavorado, até a casinha da Rua do Fogo.
Como se estivesse hipnotizado, deixei-me conduzir pelo doido manso e, rapidamente lá chegamos passando por entre o caos em que se transformara a casa, deparamo-nos diante do quarto de dormir, onde toda ensanguentada e lívida, estava Sadalina agarrada à imagem do Santo Antônio e a ele pedindo perdão, entre calorosas preces, por não ter confiado nele e a ele ter atribuído os desenganos dos últimos acontecimentos.
 Quando ela notou a nossa presença, ela me chamou para perto de si e, com firmeza e incrível lucidez, pediu-me para ajudá-la a recompor o oratório do santo e a reorganizar toda a casa, ao tempo em que o solícito Modesto já acendia o fogo da fornalha, retirava da casa os entulhos e foram comparecendo, uma a uma, as velhas companheiras todas convocadas pelo solícito e imprevisível doido de rua.
Depois de tudo esclarecido é que ela, já com o curativo que lhe fizeram na testa, relatou com minúcias o seu estado de espírito naqueles tenebrosos dias, fazendo com que todos tomassem conhecimento do motivo daquela maravilhosa retomada da situação, o que, de fato, representa a importância de um simples gesto a favor de quem esteja no fundo do poço, já sem esperanças de qualquer recuperação.
O fato é que, desde o dia em que a vovó retornara a sua casa e em lá chegando, por vingança que ela julgava ser justa, passou a descarregar sua raiva no pobrezinho do Santo Antônio a quem ela culpava pelo não atendimento de seus pedidos e orações, tendo ele, na sua visão, permitido a morte da querida filha.
Por isto, como castigo, despiu a imagem de seus paramentos rendados, tirou-lhe o Menino Jesus dos braços, colocando o santo na posição de ponta-cabeça e virado contra a parede, dentro do seu oratório.
Diante daquele completo abandono e o consequente acúmulo de lixo no seu quarto, tudo indica que o passeio de um rato faminto em busca de alimentos tenha provocado o desequilíbrio da pesada imagem e esta, lá de cima, precipitou-se sobre a cabeça da velhinha levando-a a nocaute e provocando-lhe aqueles ferimentos na cabeça.
Naquele mesmo dia, após os curativos e o mutirão para recompor a bagunça, Sadalina entendeu que o feitiço teria virado contra a feiticeira e, cheia de remorsos, apaziguou-se com o querido santo, decretando a volta de tudo à normalidade, tendo ela vivido, ainda por muito tempo, alegrando a sua confraria e para fazer-se perceber do quanto continuava sendo amada e querida, não por todos, pois existem sempre os hipócritas, mas por nós que primávamos de seu carinho e sabíamos tanto admira-la e compreender-lhe os encantamentos.
E ainda hoje, relembrando-me de sua polêmica e alegre figura, tenho naquela incrível velhinha uma referência de fortaleza e de sabedoria no transformar coisas e momentos simples em verdadeiros tesouros que vou, pouco a pouco, descobrindo em qualquer lugar, como um poder maravilhoso de encontrar a amizade em todo semelhante, sentir com firmeza o bálsamo do amor fraterno, valorizando a capacidade de entender as diferenças da vida, preparando-me para a aceitação das diversidades, buscando na essência das coisas o merecido respeito para a mais simples individualidade, recebendo-a como bênção a refrigerar-me o árduo caminho que vou trilhando pelo mundo, numa existência incerta cuja busca deve orientar-se pelo bem, instrumento ideal para os que almejam tão somente de compreensão e paz.

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Axé, minha querida vovozinha;

Axé “Tim” Modesto, amigo doido manso que gratuitamente alimentava de lenha e de garranchos, os fornos e fornalhas em que a vovó Dadá fabricava suas gostosuras e, com todo o fogo abundante e amigo, inundavam de calor humano todas as suas inocentes travessuras.

Axé “mãe-Ana de Sabino”, doula sábia que nos aparou, que lavava nossa roupa e que, a mim, ensinou-me a nadar.

Axé e “atchim”, à inolvidável confraria do carinho, da oração, da solidariedade, do amor, das compoteiras de doce, dos quibebes, frituras e friquissés, dos licores, das pândegas e do rapé.
           
              
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Menininha bonitinha
Cabelinho de retrós
Dá um pulo na cozinha,
Vai coar café pra nós”

Terezinha na fornalha
Tá torrando o meu rapé
A água  dentro da talha
E fogo escaldando o pé.

Noite em que nêgo passeia,
Queixo de cobra não manca:
É pra roubar em roça alheia
E falar mal de moça branca.

Senhores e Senhoras,
Caldeirões e caçarolas,
Dou-lhes um peido
 e vou-me embora.

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[1] Idalina Pinheiro Sena – viúva de Elias Leão, mãe de Maria (Loura) Sena Mota, Júlia Sena Cabral e Cândida Sena Miranda.

[2] Atual Rua Cônego Barreiros, casa que foi demolida para dar lugar ao depósito da firma comercial “Constrular”.

[3] João Benedito Fernandes, maestro da Banda de Música Euterpe Conceição e por diversas vezes Juiz de Paz do Distrito-Sede do município de Minas Novas.

[4] Recurso de esquadria utilizado nas construções antigas quando eram abundantes imensas peças de madeira de lei que permitiam a dispensa das cumeeiras..
[5] - Carbonato básico de chumbo, empregado em pinturas; o mesmo que cerusita.
[6] Para as pessoas mais idosas qualquer moeda era denominada de “cobre” em referência à antiga unidade monetária vigente até a proclamação da república.
[7] Ruí de Miranda Costa, filho de João Lídio Miranda Costa e Cândida Pinheiro Sena Costa. Foi Coletor Estadual e faleceu em Belo Horizonte onde deixou vários descendentes.

[8] Calendário de parede, muito popular junto à população católica do interior de Minas, que até hoje é editado pela Arquidiocese de Mariana (MG).
[9] Provisões alimentícias para todo o mês.

[10] José Geraldo Coelho (Zé de Durval), proprietário da Casa Dois de Outubro, comércio que era estabelecido debaixo do Sobrado da Rua do Amparo, 7 e, posteriormente, Casa São Sebastião, na Rua do Rosário, 162, onde hoje é o Bar Quintal.
[11] Poupança que era mantida na Caixa Econômica Estadual com o objetivo de custear funerais e a celebração de missas em sufrágio das almas.
[12] Grande chaleira confeccionada de barro

[13] Utilitários de cozinha que serviam de suporte para o coador de café e para os caldeirões de ferro fundido, que eram colocados sobre as fornalhas.

[14] Fruto do coitezeiro, hoje muito utilizado como peça de artesanato e que antigamente era amplamente utilizado, depois de curado e divido em duas partes (cumbucas) para servir de tigelas ou cuias.

[15] Urinol (aparentemente novo) – um utensílio de louça branca ou de folhão ágate, que era usado sob a cama, para as micções noturnas

[16] Grupo Escolar Coronel José Bento, hoje Escola Estadual José Bento Nogueira.
[17] Ana Alves Soier, congadeira, benzedeira, lavadeira de roupas e exímia parteira, avó do Padre Júlio, atual vigário de Francisco Badaró.

[18] Alimento, refeição, comida (regionalismo muito utilizado no Vale do Jequitinhonha).

[19] Chapada do Norte, cidade que fica a 20 km de Minas Novas.

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