A INCRÍVEL CASA DA VOVÓ IDALINA
Na Casinha da Vovó
Ainda sonho
contigo,
oh, minha hilária
vovó,
Fazendo doces de
figo
Preparando o
pão-de-ló.
E a Mãe-Ana,
a Pepeta,
Cheirando o pó de
rapé,
Enquanto a Tia
Riqueta
Sorvia seu amargo
café,
Numa estranha etiqueta
Em um nigérrimo
cuité
E quem não fazia
careta
Certamente era um
lelé!
E do caldeirão
borbulhante
Lembra-me aroma do
feijão
Numa fornalha
flamejante,
Nela um fumegante
buião!
E a couve, carne de
porco,
Arroz pilado com
açafrão
Sobrava, nem um pouco,
Da traíra, ou piau,
o pirão!
Do quibebe, das
fressuras,
Da geleia e do
requeijão,
Com
farinha e rapadura,
ou do mascavo com
limão!
E, lá no quarto,
Santo Antônio,
Santo querido de
sua devoção,
Guarde esse lindo
patrimônio:
Minha vovó, aqui,
no coração!
* * * * * * * * * *
* * * * * *
A casa da vovó Idalina[1],
na Rua do Curral[2],
era uma construção geminada com a residência da família do Mestre João Benedito[3],
e ambas tinham, em comum, um único e enorme telhado, que era aparente e bem
acima das grossas paredes, desprovido – por desnecessários naquela singular
estrutura em asna[4] -
de cumeeira e de ripas, sendo que as telhas enormes que as guarneciam, e que
eram feitas de barro queimado, assentavam-se diretamente sobre os grossos
caibros cerrados em madeira de lei.
Era uma casa
muito antiga, talvez uma das poucas moradias remanescentes da época da fundação
da cidade, de um tempo quando se usava paredes com altíssimo pé direito,
pesadas portas com aldravas e tendo apenas uma porta e uma janela pela frente. Depois
da sala de entrada, guarnecida de um único aparador com quatro cadeirinhas
articuladas, havia alguns retratos antigos pendurados na parede caiada a
alvaiade[5]
e, deste cômodo, passava-se a um corredor ladeado por um comprido e luzidio
banco, o qual servia a um só tempo de arca e de cama, além de uma cômoda
grande, com chaves, onde eram acomodadas as roupas brancas, os cobertores e os
poucos guardados da casa. Fazia-se, também neste cômodo, a ligação da sala à
pequena varanda, tendo-se ainda o acesso a um quarto escuro, sem qualquer
janela, que invariavelmente permanecia fechado, suscitando-me curiosidades e
fantasias. Na varanda, onde havia uma enorme mesa e bancos de madeira, ficava
um armário envidraçado, do tipo guarda-louças, que exibia enormes compoteiras e
licoreiras de vidros coloridos contendo as iguarias, a principal razão da minha
freqüente visita àquele casebre sombrio e silencioso. A esta dependência,
ligava-se a cozinha de fogão de lenha, tendo ainda uma pequena despensa com as
prateleiras e o quarto de dormir de minha bisavó, onde existia como únicos
móveis um catre de madeira com tiras entrecruzadas, de couro-cru, e sobre esta
cama, afixado à altura do meio oitão, um oratório com imagens sacras donde
pontificava um vistoso e paramentado Santo Antônio, em madeira com policromia,
trazendo em seus braços o divino afilhado, local onde a vovó escondia seus
“cobres” [6]
e suas poucas joias.
A vovó, no meu
tempo de criança, quando ela já passava dos oitenta, tinha, como forte
motivação de sua vida, o carinho de uma numerosa família, a dedicação do seu
neto Rui Miranda, a presença sempre amiga e solidária de um definido grupo de
amigos e, naturalmente com maior apreço, como seu verdadeiro “rei e senhor”, o
idolatrado santo casamenteiro ao qual jamais admitia faltar-lhe muitas flores,
velas e orações.
Eu me incluo,
com toda modéstia, entre o círculo daqueles a quem ela dedicava seu particular
agrado, pois nesta condição, era evidente seu tratamento especial, bem
diferente do que ela dispensava à maioria dos parentes mais jovens de então,
certamente devido à compreensão e paciência que procura ter para com ela, não
me ligando muito a suas esquisitices, algumas até desconcertantes, acatando com
naturalidade os seus costumes, muitos que às vezes até agrediam os padrões da
época e se chocavam com a rígida moralidade, que mesmo de fachada, ainda hoje
se procura impingir aos familiares.
Com ela não
tinha tempo ruim, meios termos e papas-na-língua, pois não se intimidava diante
de nada e não levava desaforos para casa. Sua vitalidade era invejável e sua
franqueza temível, não se escapando de sua ira os moralistas de ocasião, as
pessoas que não lhe eram simpáticas e muitas a quem, com frequência mandava “ir a sebo” ou então, simplesmente, a “beber merda”.
Desde que a
minha tia-avó Candinha Sena falecera, justamente por causa do parto do único
filho (Rui[7]),
fato que já havia muito tempo transcorrido, a saudosa Sadalina preferiu dividir
sua morada apenas com aquele seu neto órfão e, muito tempo depois, quando este
já estava adulto e resolveu ganhar o mundo e partiu de mala e cuia, ela com sua
dor e saudades passou a viver sozinha e não aceitava a companhia nem mesmo de
ajudantes ou empregados domésticos, sendo ela mesma que cuidava pessoalmente de
todos os afazeres e só se recorria aos parentes para o suprimento do muito
pouco que ela carecia para atender sua rotina diária.
E era ela
própria que comparecia, nos dias marcados na “folhinha-de-mariana” [8],
para recolher na casa de cada parente aquilo que cada um ficou escalado de
fornecê-la: era assim que lá na nossa casa ela ia buscar o grosso do seu
consumo [9]
, isto porque meu pai era vendeiro [10]
e mantinha, a débito dela, uma caderneta onde se lançava item por item, cujo
pagamento, ao final de certo tempo, ela procurava acertar a seu modo e com a
mesada em dinheiro que religiosamente lhe enviava o neto Rui, a essa altura, já
muito bem encaminhado como funcionário público, de lá de uma das diversas
cidades por onde residiu e exerceu suas funções como coletor estadual.
O entronado e
festejado Santo Antônio, a cada dia, tornava-se mais forte e presente na vida
da minha fervorosa e irreverente bisavó, sendo ele o motivo maior de suas frequentes
missas, terços, novenas e festas.
Pelo menos uma
vez ao mês eram convocadas as inúmeras amigas dela, um verdadeiro batalhão de
choque composto por Pepeta, siá Riqueta, Mariana Crochê, Celina de Gabriel,
Geralda de Panta, Fausta, Ana Félix, Nenega, Burrucha, Adelaide de Juca Lopes,
Aninha de Chico, Ana de Sabino, Adélia Araújo, Teodora, Breu e tantas outras da
mesma era, mas de diferentes classes e condições, para enfrentarem a reza do
infindável terço, após o qual, invariavelmente, degustavam-se, além das
compotas e licores, razoável quantidade da boa cangibrina e gordurosos petiscos
fartamente servidos para aquela seleta confraria de vetustas damas que se
esbaldavam, ao largo do zelo pelas dietas e das restrições cabíveis àquelas bem
urdidas extravagâncias.
Além dessas
estroinices, cotizava-se entre elas – sendo a fidelíssima Siá’Riqueta a
diligente tesoureira – uma caixinha para manter o “Monte Calvário” [11]
, um compromisso que consistia em remeter, periodicamente, ao Padre Victor da
Radio Aparecida, as espórtulas que acreditavam serem necessárias para a
salvação de suas piedosas almas. E esta seria uma providência até muito
louvável, considerando-se a sagrada finalidade, se fosse de fato rigorosamente
observada, pois ocorria sempre delas apelarem à milagrosa economia para o
custeio de gastos extras, na organização dos inofensivos convescotes e outras
pândegas.
Certa vez
causara reboliço entre os parentes, que foram acordados no meio da madrugada,
com a notícia de que acontecia no interior da casa da vovó alguma coisa
estranha a incomodar toda a vizinhança, uma cantilena interminável com choros,
soluços entrecortados de apupos e vivas, sendo que as pessoas que lá se
encontravam não respondiam aos chamados nas portas e nas janelas, todas estas
muito bem trancadas por dentro.
Minha mãe, a
quem sempre se apelavam nestas ocasiões, em companhia de outros parentes
corajosos que para lá se diligenciaram, colhidos pelo inusitado conseguiram a
força de muito custo e acessando aos fundos da casa através da escalada dos
muros, adentrarem-se naquele verdadeiro antro, deparando com uma cena ao mesmo
tempo triste e hilária: a casa, literalmente horripilante, à meia claridade e no
lusco-fusca bruxuleante de velas, com muitas flores já desarranjadas, copos e garrafas
vazias espalhadas pelo chão, era um sinistro ambiente onde várias carpideiras
que já estavam prostradas, tendo ao centro da sala a intrépida Sadalina, a quem
velavam numa mortalha, sendo que esta que já se debatia tentado, por todos os
meios, livrar-se das muitas amarras que a imobilizava dentro de um funesto
caixão de pinho, todo acolchoado de cetim roxo, com galões dourados e rendas
brancas, de onde lançava gritos alucinantes, de ânsia e pavor, sem com isso
obter o socorro que implorava às companheiras, coadjuvantes de uma encenação
que já passava dos limites e na qual se encontravam completamente desnorteadas.
Minha
vovozinha, por ter ficado muito tempo amarrada, era a única - naquela inusitada
cena – a que demonstrava um pouco de lucidez, incrivelmente sóbria, pois é bem
certo que em velórios autênticos, mesmo hoje nas cidades do interior, a única
pessoa que não bebe é a defunta, mas na presente situação, era ela a única
“sacrificada” (daí a inquietação e lamúrias) pois já estava há muito tempo,
devidamente “ressuscitada” e sequiosa de um bom trago de vinho.
Passados o
susto e os procedimentos necessários à recomposição do sinistro e deplorável
quadro, apurou-se que a balbúrdia era um ensaio geral, no qual as participantes
foram surpreendidas pelo virtuosismo ao se prepararem, invulgarmente, para o
desfecho daquela triste experiência, em que a vovó vivia o papel de uma
defunta, com o objetivo único de observar e conferir, pessoalmente, como seria
o comportamento das amigas na hora “h” quando ocorresse, de fato, o seu
falecimento e o seu próprio velório.
E, segundo a versão delas, era um desejo muito
importante que estavam realizando, tendo sido muito positiva a experiência,
graças à proteção do glorioso Santo Antônio, sempre presente, que tudo via, mas
continuava bem sério, firme e impassível, lá no seu imponente trono.
Imediatamente cada uma tomou o seu rumo, muito
ressabiadas, como se estivessem saindo da missa ou de um piedoso retiro
espiritual onde, naturalmente, tivessem passado por uma boa reprimenda ou por
um bom sermão aplicado pelo padre e confessor.
Mas, logo-logo, outras peripécias viriam para
completar a rotina.
Minhas tias e
minha mãe, que eram netas da Vovó Dalina, embora zelosas, só tomavam
conhecimento dos eventos – não os sacros, mas os profanos e os festins, que
eram frequentes e promovidos sem anúncio prévio, somente depois deles
consumados, pelo que viviam apavoradas diante dos imprevisíveis desfechos que
felizmente nunca chegaram a se consumar. Naturalmente que elas não os
aprovavam, de forma alguma, mas jamais se negavam de contribuir, com os ingredientes
que eram ali consumidos, mesmo que o fizessem involuntariamente, levadas que
eram pelos ardis e estratagemas da peralta anciã. Isto porque eram elas que se
encarregavam de nada deixar faltar, além de promoverem a incrível aceitação, no
mercado local, dos produtos culinários daquela esperta velhinha, iguarias
incomparáveis como ambrosias, chouriços, doces de figo e tantas outras compotas
que ela fornecia aos consumidores selecionados, nas casas abastadas da cidade,
cuja receita em muito ajudava no seu orçamento.
Era de fato
irresistível o apelo que aquelas guloseimas exerciam sobre o restrito e
privilegiado grupo de consumidores. Prova maior disto é que, até nos leilões
das festas tradicionais, eram suas compotas as mais disputadas, atingindo os
melhores lances ao serem arrematadas como preciosas prendas.
Embora fossem
vários e fartos os potes de doces que ficavam nas prateleiras da despensa, que
não paravam de ser renovados, não era costume de minha bisavó cozinhar a sua
própria comida dentro dos padrões daquela época, em que o trivial era, e
continua sendo, o famoso feijão com arroz e eventuais misturas. Para ela o
básico se consistia do conteúdo gorduroso de um caldeirão de ferro,
constantemente fervente ao lado dos tachos de cobre, tudo sobre um fogão de
lenha que jamais se apagava.
Daquele caldeirão fumegante é que saia suas
refeições nada frugais.
Nele, ela misturava feijão preto com pedaços
de toucinho, pé de porco, linguiças, costelas, carne seca, tripas de frango,
miúdos de boi e outros pertences da culinária extravagante, aos quais se
acrescentavam, no prato, condimentos apimentados, quibebes e raízes. As
refeições não obedeciam a horários e eram intercaladas com o consumo de
cachaça, frituras de peixes, molhos de traíras ou acompanhados de café muito
amargo no qual ela adicionava farinha de milho, pedacinhos de queijo ou de
requeijão envelhecido, preparando o que ela chamava de capilé. Também era comum
o uso do escaldado, uma associação de farinha de mandioca com o caldo de osso
que ela reservava durante a confecção de outra sua especialidade que era a geleia
de mocotó.
Devido ao
referido cardápio, ao qual tinha acesso todos quantos pela cozinha
transitassem, minha mãe exercia severa vigilância, proibindo-me de apreciá-lo,
sob o pretexto de ser prejudicial a minha saúde o que se revelava, de certa
forma, em fato bastante controverso diante da boa disposição física daqueles
que dele se esbaldavam, inclusive o da própria Sadalina que, apesar da idade
bem avançada, jamais se queixava de perrenguiças e macacoas tão comuns a essa
altura da vida, tanto é que só veio a falecer beirando seus cem anos, assim
mesmo em decorrência de fraturas ósseas resultantes de uma queda sofrida no
quintal de sua casa.
De qualquer
forma não me apeteceria provar nem um pouco daqueles manjares, pois mesmo não
censurando os métodos pouco assépticos considerava-os um tanto quando
ortodoxos. O café, obtido de grãos não selecionados, e que alem do mais eram
triturados no pilão, após serem torrados em tachas de ferro e juntos de
sementes de fedegoso e de aroeira, passava pela infusão, dentro de um boião [12]
de barro para cocção, passando depois por um coador de pano, que nunca se
lavava, e preso à trempe ou ao mancebo[13],
sendo que ali permanecia em constante fervura, resultando-se um gosto
intragável, para o meu paladar, mormente pelo fato de que era servido em
cumbucas de coité [14]
e jamais em xícaras como ocorria nas outras casas. Entretanto, às vezes
tentavam-me o requeijão amolecido no melaço quente de rapadura, o pirão de
peixe ou o angu-liso de milho verde com taioba e farinha de lambari torrado. E
estes – como forma de se escapar da vigilância de mamãe - a minha bisavó
espertamente os acondicionava dentro de um bornal estrategicamente escondido,
reservado para ficar à minha disposição, debaixo de um pacato pinico virgem [15]
e este, por sua vez, dentro do armarinho de cabeceiras no seu quarto de dormir.
E era assim,
participando ativamente desse fantástico cotidiano, que fui levando minha
incrível infância.
Toda tarde,
logo após as aulas e ao sair do grupo escolar,[16]
que fica logo ali nas imediações, ao retornar-me para casa, antes passava na
casa da vovó para tomar-lhe as bênçãos e dela receber as melhores goiabas,
figos maduros, mangas sapatinhas, laranjas baianas ou até mesmo os mimos
escamoteados e com os quais nos deliciávamos, às escondidas, mas diante do
olhar matreiro, conivente e paternal do sorridente Santo Antônio, lá de cima do
seu lindo oratório, rodeado de tantos outros santinhos e anjos, todos
compenetrados, silenciosos, olhando para todos nós, como que aprovando nossas
maluquices, enquanto iam eles rezando e lambendo os seus beicinhos celestiais.
Depois daquele
almoço, descansava tranquila a boa velhinha, estirada sobre o macio catre,
sempre cochichando suas intermináveis ladainhas e cofiando o seu imenso rosário
de contas negras, elevando silenciosamente suas devotas orações dedicadas ao
santo predileto, invocando, por seu intermédio, a proteção divina para todos
nós e mais ainda entregando a ele a defesa constante do seu neto distante, para
que jamais se olvidasse de remeter-lhe, pela Caderneta de Poupança, a tão
esperada mesada de cada mês.
De dentro do
quarto, com a porta aberta para a varanda, lá de sua cama ficava ela rezando e
com os olhos bem abertos, olhando lá no quintal, os sanhaços, os sofrês e os
sabiás que não davam tréguas ao bem cuidado pomar onde abundavam os figos, os
as goiabas, os mamões os pêssegos e as mangas, que naquele instante estavam
deixando de ir para o tacho.
********
Terminada a
ruazinha do Curral, iniciava-se um caminho de terra batida que ia dar ao
ribeirão do Bonsucesso. Não muito distante ficava o poço da Gameleira, onde
Sinhá Ana de Sabino [17]
diariamente lavava imensas trouxas de roupas. E era para lá que a vovó, ainda
pela manhã, dirigia-se levando o dicumê [18]
da comadre e, no alforje de lona, além do caldeirão de alumínio, a inseparável
licoreira de vidro cor de rosa e em forma de mulher nua, não contendo licor,
mas o líquido branco de que os passarinhos jamais fazem uso.
E era sempre
sem qualquer cerimônia que ali naquele recanto do riacho, em plena luz do dia,
ela se despia completamente e se banhava nas águas frias, como se fosse uma
antiga iara ou, na visão de alguém que passasse na estrada da Chapada[19],
até mesmo uma ondina distraída que talvez ali estivesse buscando a juventude
distante e a inocência perdida ou ainda, quem sabe, a sabedoria contida no
tempo e na certeza de que mais nada de bom poderia haver para se conquistar.
Aquela
velhinha de longos cabelos brancos, quase sempre enrodilhados sobre a cabeça,
tinha um andar curto, mas esperto, de pequenos passinhos dados com os pés
descalços ou com as chinelas de pano, como se estivessem deslizando sobre uma
areia escaldante. Trajava sempre um vestido longo, inteiriço, sem cintura, com
vários bolsos, feito de tecido escuro e estampadinho de mimosos ramos em tons
mais claros, um aconchegante xale negro de lã e o indispensável rosário em
volta do pescoço. Na mão a inefável bengala, muito mais destinada aos amáveis
cocorotes do que para golpear animais ou firmar-lhe os passos. Em qualquer
lugar da rua eram os carros, animais ou transeuntes que tinha de se desviar
dela, pois jamais se arredava da direção em que seguia, nem mesmo para urinar,
quando para isto tinha de fazer, não por incontinência, mas por costume, apenas
afastando as pernas e, de pé, como uma fêmea de qualquer outro animal, ali
mesmo satisfazia sua premente necessidade, sem qualquer cerimônia ou
constrangimento.
Ai, porém, daquele que lhe dirigisse alguma censura,
fossem criança ou adulto, pois era logo ameaçado pela indefectível bengala, com
a qual ela se investia, o que ficava apenas em ameaças, pois imediatamente
seguia seu caminho com os passos miúdos, aos pigarros e muxoxos.
Tudo isto, sem lhe causar a menor afetação,
era motivo de muito carinho por parte de muitos de quem ela agradava e de
escândalo para os que nela viam uma jararaca perigosa ou um osso duro de se
roer.
Muito embora vivendo com parcos recursos, pois se mantinha
da mesada do neto Rui e da carinhosa assistência dos parentes, pois de herança
seu pai quando sumiu só lhe deixou foi um bando de desamparados, em sua casa
sempre acolhia os amigos que vinham da zona rural, em dias de festa ou na busca
de algum recurso na cidade, bem como não se furtava de socorrer também aos
mendigos, aos mais necessitados e também aos desocupados que a ela,
indistintamente, recorriam na certeza de acolhimento.
Os doidos de rua, os mendigos, os bêbados e os
idosos abandonados tinham nela verdadeira protetora e, se ela, no momento em
que fosse procurada, não dispusesse do que lhe pediam, intercedia-se pelo
necessitado junto de quem o pudesse, não lhe faltavam as mãos caridosas para
praticar, através dela, o amparo da solidariedade e do amor fraterno.
Dentre os muitos fatos curiosos e marcantes que ilustram a
memória de minha querida bisavó, um se destaca pela imensa carga poética e como
verdadeira lição a ensinar sobre a fragilidade humana e de como se deve
proceder diante das mazelas e das fraquezas humanas para superar-se em momentos
de dúvida e de difícil entendimento.
Aconteceu justamente em 21 de abril de 1962, um dia de
feriado, data em que também se comemorava o primeiro aniversário de Brasília,
assunto que era o motivo do orgulho nacional estampado no rosto de todos.
Na loja de meu
pai, onde toda noite se reunia um grupo de amigos para escutar o noticiário
todos estavam muito atentos e com os ouvidos ligados ao rádio.
Repentinamente
aparece ali a minha avó, chegando-se ao balcão distribuindo suas bengaladas, a
torto e a direito, esbravejando contra os presentes e dizendo impropérios
contra os médicos, os santos e muito mais ainda contra os políticos, a quem
culpava, naquele momento, pela terrível desgraça que segundo ela se abatia
sobre todos, naquele momento.
Meu pai, entre
surpreso e atônico, foi o primeiro a escapulir, pois já conhecia de perto os
ímpetos, os rompantes e o temperamento pouco amistoso daquela velhinha quando
ficava aborrecida.
Saiu ele correndo e minha avó no seu encalço
tentando, sem sucesso, alcançá-lo com seu temido bordão.
Serenados um pouco os ânimos, é que todos
puderam se certificar da tragédia: tinha acabado de falecer a sogra de meu pai,
a mãe de minha mãe, a minha avó materna Loura Sena que, por sua vez, era filha
da desesperada vovó.
Foi uma
consternação geral, pois embora estivesse doente já há algum tempo, tendo
ficado em tratamento na capital e de onde tinha chegado a poucos dias, trazida
por um avião fretado, não se esperava um desfecho, assim tão rápido como
acontecera.
Minha bisavó,
porém, era a mais exaltada e não aceitava, de forma alguma, aquela notícia como
um fato consumado e clamava aos céus que não era justo morrer a sua filha quando
o mais natural seria que ela, sendo muito mais idosa, é que deveria ter sido a
escolhida para morrer.
Tentavam em
vão acalmá-la, sendo que um dos presentes, que por coincidência era
farmacêutico, conseguiu aplicar-lhe um eficiente calmante que logo a sedou e a
fez adormecer, permitindo aos presentes se deslocarem, incontinenti, para a
local onde se iniciaria o velório
A inconformada anciã permaneceu na nossa casa
e sob o efeito de medicamentos somente recobrou a consciência no outro dia,
quando já havia acontecido o enterro.
No decorrer daquele dia a mesma foi
recuperando suas forças e, quando ninguém mais estava atento, ela conseguiu
sair pelos fundos da casa e se dirigiu ao cemitério e ali, com as próprias
mãos, pôs-se a remover a terra ainda sem compactar da cova em que estava
enterrada a falecida.
Acorreram os parentes ao local para impedi-la,
lá deparando todos com um quadro dantesco, onde minha pobre bisavó, como
tresloucada, arrancava de dentro do esquife destroçado, a mortalha de sua
própria filha.
Tiveram que usar da força para demovê-la
daquele intento e voltaram com ela para casa, onde ela ficou sob cuidados
médicos por vários dias, durante os quais ela não queria aceitar nem alimentos,
nem remédios, nem ouvir qualquer conversa.
Permaneceu assim no mais completo mutismo, só
desejando também a morte.
Para mim, que com ela mantinha muita afeição,
era-me doloroso vê-la naquele lastimável estado e ao mesmo tempo entender, pois
tinha então apenas 10 anos, uma idade que não me permitia ainda a compreensão
dessas passagens tristes da vida.
Contudo, a
minha presença perto dela, parece que foi aliviando-lhe o estado e pouco a
pouco ela concordou em tomar um novo rumo e voltar à normalidade, na medida do
possível.
Chegou, enfim,
o dia em que todos concordaram em deixar que ela voltasse para sua casinha,
convencidos pelos seus constantes apelos em retomar a rotina, o que de fato
parecia ser uma saudável recuperação.
Mas, a partir
de então, tudo passou a ser diferente naquela casa.
O silêncio era completo. O fogão vivia
apagado. As plantas no quintal não mais recebiam qualquer cuidado e os
passarinhos, com o tempo, todos o debandaram.
As compoteiras
e licoreiras, no abandonado guarda-louças, se transformaram em refúgio das
formiguinhas que aproveitavam as últimas migalhas açucaradas. Na porta da rua e
na sala da casa foram-se acumulando feixes de garranchos que, por força do
costume, todo dia ali depositava o doido manso Modesto (9) um dos poucos
companheiros que continuou fiel a uma criatura no seu momento mais frágil, em
que mais necessitava do apoio moral e da mão amiga estendida.
Aquela
desolação, que a mim causava mal estar e medo, passou a exercer, também em mim,
a tendência de afastamento daquele local e, sem o perceber, já não mais passava
para visitar e ver a minha bisavó, nem mesmo para receber dela os antigos
mimos.
E este comportamento, que não foi percebido
até mesmo tenha sido estrategicamente induzido pelos lá de casa, talvez no
intuito de poupar-me de um sofrimento que não convinha e mim, naquela idade,
compartilhar, um sentimento doentio e avassalador que corroia e que, se não
contidos, fulminariam com os poucos dias que restavam para já abatida criatura.
E o tempo, que
cicatriza todas as feridas, quase que conseguiu, por completo, fazer-me
esquecer da vovozinha, até que certa manhã, descendo a rua em direção ao grupo
escolar, fui abordado, com certa rispidez, pela mão áspera, suja e calosa de
Modesto que me obrigou a acompanhá-lo, atônico e apavorado, até a casinha da
Rua do Fogo.
Como se
estivesse hipnotizado, deixei-me conduzir pelo doido manso e, rapidamente lá
chegamos passando por entre o caos em que se transformara a casa, deparamo-nos
diante do quarto de dormir, onde toda ensanguentada e lívida, estava Sadalina
agarrada à imagem do Santo Antônio e a ele pedindo perdão, entre calorosas
preces, por não ter confiado nele e a ele ter atribuído os desenganos dos
últimos acontecimentos.
Quando ela notou a nossa presença, ela me
chamou para perto de si e, com firmeza e incrível lucidez, pediu-me para
ajudá-la a recompor o oratório do santo e a reorganizar toda a casa, ao tempo
em que o solícito Modesto já acendia o fogo da fornalha, retirava da casa os
entulhos e foram comparecendo, uma a uma, as velhas companheiras todas
convocadas pelo solícito e imprevisível doido de rua.
Depois de tudo
esclarecido é que ela, já com o curativo que lhe fizeram na testa, relatou com
minúcias o seu estado de espírito naqueles tenebrosos dias, fazendo com que
todos tomassem conhecimento do motivo daquela maravilhosa retomada da situação,
o que, de fato, representa a importância de um simples gesto a favor de quem
esteja no fundo do poço, já sem esperanças de qualquer recuperação.
O fato é que,
desde o dia em que a vovó retornara a sua casa e em lá chegando, por vingança
que ela julgava ser justa, passou a descarregar sua raiva no pobrezinho do
Santo Antônio a quem ela culpava pelo não atendimento de seus pedidos e
orações, tendo ele, na sua visão, permitido a morte da querida filha.
Por isto, como
castigo, despiu a imagem de seus paramentos rendados, tirou-lhe o Menino Jesus
dos braços, colocando o santo na posição de ponta-cabeça e virado contra a
parede, dentro do seu oratório.
Diante daquele
completo abandono e o consequente acúmulo de lixo no seu quarto, tudo indica
que o passeio de um rato faminto em busca de alimentos tenha provocado o
desequilíbrio da pesada imagem e esta, lá de cima, precipitou-se sobre a cabeça
da velhinha levando-a a nocaute e provocando-lhe aqueles ferimentos na cabeça.
Naquele mesmo
dia, após os curativos e o mutirão para recompor a bagunça, Sadalina entendeu
que o feitiço teria virado contra a feiticeira e, cheia de remorsos,
apaziguou-se com o querido santo, decretando a volta de tudo à normalidade,
tendo ela vivido, ainda por muito tempo, alegrando a sua confraria e para
fazer-se perceber do quanto continuava sendo amada e querida, não por todos,
pois existem sempre os hipócritas, mas por nós que primávamos de seu carinho e
sabíamos tanto admira-la e compreender-lhe os encantamentos.
E ainda hoje,
relembrando-me de sua polêmica e alegre figura, tenho naquela incrível velhinha
uma referência de fortaleza e de sabedoria no transformar coisas e momentos
simples em verdadeiros tesouros que vou, pouco a pouco, descobrindo em qualquer
lugar, como um poder maravilhoso de encontrar a amizade em todo semelhante,
sentir com firmeza o bálsamo do amor fraterno, valorizando a capacidade de
entender as diferenças da vida, preparando-me para a aceitação das
diversidades, buscando na essência das coisas o merecido respeito para a mais
simples individualidade, recebendo-a como bênção a refrigerar-me o árduo
caminho que vou trilhando pelo mundo, numa existência incerta cuja busca deve
orientar-se pelo bem, instrumento ideal para os que almejam tão somente de
compreensão e paz.
******************
Axé, minha
querida vovozinha;
Axé “Tim”
Modesto, amigo doido manso que gratuitamente alimentava de lenha e de
garranchos, os fornos e fornalhas em que a vovó Dadá fabricava suas gostosuras
e, com todo o fogo abundante e amigo, inundavam de calor humano todas as suas
inocentes travessuras.
Axé “mãe-Ana
de Sabino”, doula sábia que nos aparou, que lavava nossa roupa e que, a mim,
ensinou-me a nadar.
Axé e
“atchim”, à inolvidável confraria do carinho, da oração, da solidariedade, do
amor, das compoteiras de doce, dos quibebes, frituras e friquissés, dos
licores, das pândegas e do rapé.
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“Menininha bonitinha
Cabelinho de
retrós
Dá um pulo na
cozinha,
Vai coar café
pra nós”
Terezinha na
fornalha
Tá torrando o
meu rapé
A água dentro da talha
E fogo
escaldando o pé.
Noite em que
nêgo passeia,
Queixo de
cobra não manca:
É pra roubar
em roça alheia
E falar mal de
moça branca.
Senhores e
Senhoras,
Caldeirões e
caçarolas,
Dou-lhes um
peido
e vou-me embora.
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[1] Idalina
Pinheiro Sena – viúva de Elias Leão, mãe de Maria (Loura) Sena Mota, Júlia Sena
Cabral e Cândida Sena Miranda.
[2] Atual
Rua Cônego Barreiros, casa que foi demolida para dar lugar ao depósito da firma
comercial “Constrular”.
[3] João
Benedito Fernandes, maestro da Banda de Música Euterpe Conceição e por diversas
vezes Juiz de Paz do Distrito-Sede do município de Minas Novas.
[4] Recurso
de esquadria utilizado nas construções antigas quando eram abundantes imensas
peças de madeira de lei que permitiam a dispensa das cumeeiras..
[5] -
Carbonato básico de chumbo, empregado em pinturas; o mesmo que cerusita.
[6] Para as
pessoas mais idosas qualquer moeda era denominada de “cobre” em referência à
antiga unidade monetária vigente até a proclamação da república.
[7] Ruí de
Miranda Costa, filho de João Lídio Miranda Costa e Cândida Pinheiro Sena Costa.
Foi Coletor Estadual e faleceu em Belo Horizonte onde deixou vários
descendentes.
[8]
Calendário de parede, muito popular junto à população católica do interior de
Minas, que até hoje é editado pela Arquidiocese de Mariana (MG).
[9]
Provisões alimentícias para todo o mês.
[10] José
Geraldo Coelho (Zé de Durval), proprietário da Casa Dois de Outubro, comércio
que era estabelecido debaixo do Sobrado da Rua do Amparo, 7 e, posteriormente,
Casa São Sebastião, na Rua do Rosário, 162, onde hoje é o Bar Quintal.
[11]
Poupança que era mantida na Caixa Econômica Estadual com o objetivo de custear
funerais e a celebração de missas em sufrágio das almas.
[12] Grande
chaleira confeccionada de barro
[13]
Utilitários de cozinha que serviam de suporte para o coador de café e para os
caldeirões de ferro fundido, que eram colocados sobre as fornalhas.
[14] Fruto
do coitezeiro, hoje muito utilizado como peça de artesanato e que antigamente
era amplamente utilizado, depois de curado e divido em duas partes (cumbucas)
para servir de tigelas ou cuias.
[15] Urinol
(aparentemente novo) – um utensílio de louça branca ou de folhão ágate, que era
usado sob a cama, para as micções noturnas
[16] Grupo
Escolar Coronel José Bento, hoje Escola Estadual José Bento Nogueira.
[17] Ana
Alves Soier, congadeira, benzedeira, lavadeira de roupas e exímia parteira, avó
do Padre Júlio, atual vigário de Francisco Badaró.
[18]
Alimento, refeição, comida (regionalismo muito utilizado no Vale do
Jequitinhonha).
[19] Chapada
do Norte, cidade que fica a 20
km de Minas Novas.
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