A alma das ruas no carnaval do Rio
Escrito por Léo Lince
"Momo
é o único rei que amei”
(Moacyr
Luz, "O anjo da velha guarda”)
As grandes festas populares sempre foram, ao longo
da história da humanidade, explosões de desafogo para as agruras da vida. Ao
comemorar colheitas, chegada da primavera, fim de guerras ou ao espantar o
cotidiano opressivo, a folia coletiva sempre projeta transcendências, nas quais
a denúncia de tudo que é feio e torto se mescla ao delírio da fuga desabalada
para outra sorte. Pelo riso, pela ironia e até pelo escracho, repudia o que
entristece a vida e machuca as pessoas. E, ao mesmo tempo, anuncia o céu na
terra. Ele virá não se sabe quando, mas já se antecipa no gozo comum da afeição
compartilhada.
O carnaval brasileiro, desde as origens, sempre se
alinhou na estirpe da festa forte. Nasceu como válvula de escape oferecida
pelos senhores de escravos, nos dias que antecediam a Quaresma, e cresceu como
alegoria da liberdade e celebração da vida. O povo, que mói no áspero o ano
inteiro, ocupa as ruas com aquele estoque inesgotável da alegria de sobreviver,
"mesmo que pão seja parco e a liberdade pequena”. E faz a festa do
portentoso descarrego para as agruras de um cotidiano pesado e difícil. O
desafogo é cronometrado, quarta feira tudo volta ao normal, mas o que nele
transborda não tem limites nem nunca terá. É a perene vitalidade da presença
popular no novelo da vida. Nela se manifesta, como aspiração de outra sina,
aquilo que o cronista João do Rio chamou de "alma encantadora das ruas”.
O carioca, de nascimento ou adoção, é versado em
ocupar com galhardia o espaço livre das ruas. Em matéria de resistência
cultural, é um bloco em cada esquina. O Cordão do Bola Preta, símbolo maior, e
a Banda de Ipanema, com Leila Diniz de eterna rainha, abrem a lista. Na
sequência interminável, uma infinidade de nomes onde a festa popular monta
trincheiras de combate. Clube do Samba, Barbas, Simpatia é Quase Amor, Suvaco
de Cristo, Bloco de Segunda, Maracancalha, Escravos da Mauá, Imprensa que eu
Gamo, Meu Bem eu Volto Já, Nem Muda nem sai de Cima, Bloco da Ansiedade, Cordão
do Boitatá, Céu na Terra, Flor do Sereno, a festa das crianças no Gigantes da
Lira e o batuque familiar do Bagunça meu Coreto, além da promessa potencial do
Esse é o Bom, mas Ninguém Sabe (ainda).
São tantos, centenas ou milhares, e a cada ano
surgem outros tantos, fora de qualquer controle. Não há liga (nem desliga)
capaz de abarcar os bastiões momescos do desafogo geral. Tão diversos entre si,
todos são oriundos da mesma tradição. Nos blocos do Rio não há cordão de
isolamento nem se exige abadá. É só chegar, com a fantasia inventada na hora e
a disposição de entrega harmoniosa ao festival coletivo. Os mascarados são bem
vindos, bem como aqueles que chegam tímidos, sem fantasia, e, aos poucos, se
entregam ao batuque contagioso. Alegria não paga entrada e a cidade do samba,
nos dias de carnaval, é a cidade inteira.
Mais do que no espetáculo grandioso do Sambódromo,
aprisionado pelo esquema empresarial da Liga (eixo do mal) que controla o
desfile oficial, é nas ruas e becos da cidade que sobrevive e se alimenta o
espírito libertário do carnaval carioca. Sem tal espírito, a materialidade da
Sapucaí se desmancharia no ar. O concreto aparente, a parafernália eletrônica
que monopoliza a transmissão, a grana que se reproduz nos desvãos da festa são
camadas superpostas sobre a força viva da cultura popular que nasce e renasce a
cada ano nas ruas.
Oswald de Andrade, em seu "Primeiro Caderno de
Aluno de Poesia”, define a mescla na qual se origina a festa carnavalesca onde
o Brasil se reconhece. Segundo ele, "O Zé Pereira chegou de caravela/e
preguntou pro guarani da mata virgem/ - Sois cristão?”. E recebeu como resposta
sincopada: "Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte./Teterê, tetê,
Quizá, Quizá, Quecê”. Depois o negro zonzo saído da fornalha tomou a palavra e
respondeu: "Sim pela graça de Deus. Canhem Babá, Canhem Babá, Cum Cum! E
fizeram o Carnaval”.
Assim foi, assim é e assim será. As ruas do Rio
estarão, nos próximos dias, mais uma vez ocupadas pelos filhos do Guarani da
mata virgem, os filhos do Quilombo de Palmares e os filhos do sapateiro Zé
Pereira. As barricadas do desejo vão se espalhar pelos quatro cantos da cidade.
Os napoleões retintos, os caciques de Ramos e os operários do bonde de São
Januário, juntos e misturados, vão tomar conta da cidade. Tremei podres
poderes, pois vai passar, mais uma vez, o sanatório geral que nos redime.
Léo Lince é sociólogo.
Fonte:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9364:submanchete210214&catid=72:imagens-rolantes