Na cultura brasileira, principalmente entre as famílias que passaram da zona rural para a urbana na 2ª metade do século XX, são nítidas algumas configurações básicas. A primeira é aquela que ouvimos dos avós (para aqueles que passaram dos cinquenta) ou dos bisavós. Predomina nos relatos a infância difícil, as privações, a não oportunidade de estudar, em razão do trabalho, logo no início da adolescência. Esses homens e mulheres possuem como marca, as mãos calejadas, o rosto marcado pelo sol, os cabelos brancos que não conheceram a vaidade e as profundas rugas que são, cada uma, traços de muitas e muitas histórias.
Os filhos e filhas dessa primeira geração conheceram a dureza, a privação e viveram em um tempo onde: sapato era para usar até o pé crescer; lápis, até ficar menor que o apontador; viagem, somente o mais velho ou o mais novo, em caso de morte ou de casamento; maçã, somente na doença. Diferente de seus pais, tiveram acesso ao estudo, herança maior e legado dos pais. Frequentaram a escola pública, quando essa era uma referência. "Ser alguém", forjado a duras penas, somente isso importava e, para esse objetivo, valiam todo o esforço e sacrifício.
Vieram os filhos dos filhos e, para estes novos pais, o desejo e a quase obstinação de dar-lhes "tudo que eu não tive". Não deveria haver falta, sofrimento, desconforto, tristeza, desejos não atendidos e nem longas esperas. Penso que, a partir desse ponto, começamos, como pais, a perder o rumo. Somente desenvolveremos estratégias de sobrevivência, de autoproteção e buscaremos autossuperação, quando tivermos que lidar com o imprevisto, as situações aleatórias, o risco, o obstáculo, a adversidade e a diversidade. Ora, quando tudo está milimetricamente organizado e controlado, estamos falando de um programa e não da construção de uma vida.
Vejamos bem o que fazemos com os nossos filhos. Vou me limitar às primeiras horas da manhã e cada um pode prosseguir com o exercício de imaginação para o restante do dia. O despertador toca. Tocou porque o pai ou a mãe o colocara para tocar. A criança ou jovem não se preocupa, não precisa se organizar com antecedência. O uniforme está limpo e passado em cima da cadeira. Como chegou lá se o deixei no chão do banheiro dois dias antes? Sento-me à mesa e está tudo limpo. Como... se deixei tudo sujo à noite? Alimento-me daquilo que não preparei; não sei de onde veio; ou quanto custou. Nada sei. Carrego uma mochila que foi duplamente verificada. E por aí vai...
A escola, sem perceber, também inventa os mais diferentes artefatos para se antecipar aos anseios, às necessidades, aos pensamentos dos seus alunos. Nesse ponto, ela "fecha o cerco" com a família e ajuda a criar o mundo perfeito da bolha de sabão. Retiramos dele as experiências e os desafios da própria vida, as delícias e as dores do viver, e os transformamos em "Tamagotchi". Para quem não se lembra, esse era o nome de um brinquedo virtual criado em 1996, no Japão, que simulava um ser vivo com necessidades biológicas e afetivas, que, se não fosse bem cuidado, "morria".
Acredito que agora vivemos o tempo de repensar a relação com nossos filhos e com nossos alunos que, definitivamente, não são tamagotchis. Um bom começo é nos perguntarmos a todo momento: o que estou fazendo por ele poderia e deveria ser feito por ele? Quem sabe também escutar a experiência dos mais velhos e, até mesmo, nos lembrar da história que protagonizamos e que, pelas durezas e dificuldades, nos conduziu a "ser alguém".
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