segunda-feira, 28 de junho de 2010

BAILADO DAS HORAS NOTURNAS EM MINAS NOVAS

- CONTOS DO LALAU (25-06-2009)

"Balanciou, balanciou ...
balanciou, a coroa do rei, balanciou!"

xô, xô, xô meu zabelê
Fico aqui a noite toda
Esperando pra ti vê...



- Boa noite, Dão!

- Boa noite, "seu" Zé.

Na década de setenta ainda havia, lá em Minas Novas, pelas manhãs, revoadas de andorinhas que, tão logo o sol subia a pino, elas se debandavam e sumiam todas, em direção do Mirante e, de lá, partiam em revoadas pelas bandas das veredas que ainda não eram contaminadas, como hoje, pelo terrível eucalipto.

E depois voltavam todas, uma a uma, naquele alvoroço matutino, tão logo rompia o outro dia, fazendo suas incríveis evoluções pelos céus fanadeiros em arriscados vôos que nunca, em tempo algum, sucederam-se de colisões ou algum desses desastres aéreos comuns aos entes que voam, com seus lindos brevês, mas que sofrem porque não têm a habilitação própria e o conhecimento adequado da sabedoria de voar.

Milhões dessas aves de arribação, guiadas pelo cansaço, pousam algumas horas nos fios, de pouca energia, desenhando nos intervalos de postes, como barras, o pentagrama onde compõem roucas sonoridades que somente elas apreciam, enquanto pintam, no calçamento das vias públicas, lá no chão, curiosas figuras escatológicas. Depois do meio-dia era a vez de outros aeronautas: canários, sofrês, fleuras, sanhaços, sabiás, pintassilgos,

rolinhas e até mesmo um solitário carretão, este acabrunhado, e aqueles a inundar de cores e de alegria os quintais e a meninada, todos lampeiros que, pela manhã, ainda estavam em seus berços ou tecendo seus ninhos, e que agora se refrescam sobre as folhagens frondosas das frutíferas, onde lhes esperam a abundância preferida de seus banquetes.

E à tardinha, quando o sol mansamente ameaçava esconder-se por detrás do Morro da Contagem, já se descambando pelos lados do Buriti e do Capão do Serro, irrompiam-se das torres do Rosário, milhares de morcegos que, incomodados com a “ave-maria” do campanário, lembravam-se do compromisso de recolherem suas sementes na imensa Sapucaieira, ensaiando vôos rasantes nos espelhos d’água de ambos os rios que logo abaixo da Cadeia Pública faziam a Barra. E daquele ponto, numa azáfama impertinente, retomavam o sentido da nascente e voltavam, seguindo céleres, Fanado acima, em direção ao córrego do Manoel Luiz onde, certamente, nas locas daqueles lajedos, iam depositar os seus tesouros.

E à noite, sob o lúgubre coaxar dos batráquios, que invadiam as ruas, caiam do alto do poste de luz as aleluias, os siriris e as bruxas, para a dieta daqueles animais medonhos preferidos pelos feiticeiros na tecedura de seus despachos.Era esse o cenário, sob o diáfano cortinado da névoa seca, na lusca-fusca de uma iluminação dengosa, que encobria o vai-e-vem sorrateiro dos demais personagens da noite que, aos poucos, surgiam dos becos e ruelas, rumo à perdição e à jogatina, no boteco de Jovina ou de Tião Preto, ora para uma bebericada na cotréia da venda de Finusca ou um cafezinho magro e negro, de madrugada, no soturno “Poleiro das Viúvas”. Também era esse o momento em que se ouvia, claramente, o colidir das bolas nos diversos bilhares do Bar Avenida, onde a usura de Mário enchia-lhe as burras, esvaziando as algibeiras de Márcio, Idé, Taco, Zé Pereira e outros beócios das apostas.

Mais acima, da cozinha do “Pescoço Sujo” exalava a fumaça que carregava o cheiro bom de uma galinha surrupiada, no tempero inconfundível de dona Alice Nolli, enquanto no Vispora, o truco e a caixeta corriam soltos, sob o vigiar atento do grupiê Laudodó.Do outro lado da rua, com suas imensas portas abertas -até altas horas-, como se fossem bocas a devorar os últimos vinténs da freguesia, mesmo sendo gélido o tempo e curto o cobre, fabricavam-se os sorvetes de coco e anis, enquanto os vendeiros iam colocando cera no batente da balancinha de pesar o ouro dos faiscadores, a esta hora meios bêbados e guardando no caborje a feira de um prato de farinha, uma libra de toucinho, uma medida de feijão bichado, um palmo de fumo de corda, uma garrafa de Gilda, meio queijo-cozido, uma forma de rapadura e um quarto de requeijão-cascudo.

Na porta do depósito de Zé de Frade, tendo lá no fundo a pocilga, de onde subia o insalubre furdunço e o ronco dos capados, entreouvia-se a afinação de um pinho que, tão logo terminasse a branquinha, haveria de planger com ternura a paixão de Plínio, Toni Catitu e Luizinho, encantados com a Rua do Fogo, reduto de uma récua de menestréis e seresteiros, atraídos pelos chouriços e torresmos de Bina, de Eufrásia, de Rosa de Fulô, de Madalena ou de outras alcoviteiras que os depenavam e os esfolavam juntos das piantes surrupiadas.

A insônia neurastênica do Toninho Dodô, na vigília constante de sua amada Marinhinha, induzia-no ao trabalho noturno de remendão, ficando a noite toda lambendo a sola das precatas e das chinelas que seriam usadas pelas beatas domingueiras, as quais, no raiar do dia, na alvorada festiva, se encantavam com o toque do trombonista Moreira: pois a sua casa verdadeira era aquela moita, onde ficava a espreitar, entre as folhagens das buguenvilias, manacás, murta-flor e dos frondosos jasmineiros, em cujos troncos durante o dia se prendiam os animais cargueiros e montarias dos fregueses de Zé Camargos, e à noite, ficando a sua tenda de soslaio, encobria-se com os córneos escuros, mesmo estando erma a rua, postando-se a vigiar a porta e a única janela da sala aguardando o retorno, que nunca acontecia, da esposa infiel que na esbórnea a avenida toda corrompia.
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No silêncio da madrugada entrecortada com o estrilar de um grilo e o esforço dum cupim roxo gigante que insistia em solapar as bases da gigantesca palmeira centenária do major Benício, sucedia o bailar eterno das horas, sustenidamente firmados nos bemóis perdidos, de notívagos contumazes das ruas da Vila Fanadeira, buscando incessantemente o que não guardaram ou então, calados, contabilizando os romances alheios, como se fossem seus os vícios e os labores dos poucos que a este castigo se condenavam.

Alguns deles catavam ouro, em bateias negras de árvores centenárias, se as pepitas se apresentassem fáceis, outros, em cadinhos ardentes, forjavam durante o dia as jóias e as alianças dos noivos eventuais, pois que raramente essas bodas aconteciam.

E a juventude perdida pelas noites nunca encontrava o amanhecer .
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Lá de longe, demandando pelo Brito e carrascais de Mané Venâncio, vem o marulhar das águas que caiam eternamente da Cachoeira das Almas, barrendo pelos campos o aroma dos pau d'arcos. pequizeiros e jatobás.A névoa seca sobe pelas grotas laterais e Burrucha, Geraldona, Loura, Bastiana, Lurdona, Rosa, Laura, Zefa, Terezão, Pureza, Tonha, Lita, Lindaura e Andrelina, fartas do trotoá, de míseras colheitas, já se recompunham, das carraspanas, com o suco de cana encardido no copo-sujo do sovina Júlio Sena.


E, então, o dia já vai quase clareando...

Dão e Zé Soier, que silenciosamente ficaram na madorna, sem trocarem uma só palavra, durante toda a noite alisando o banco do Amparo, assuntando a resenha e a poesia muda das noites minas-novenses, agora se despedem:- Boa noite, amigo Dão... o papo está muito “bão”, mas até mais logo...- Boas, seu Zé Soyer; Lembranças à Contente... Até amanhã!
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E o Congado, com suas saias rodadas de chita e cabaças, umas contendo água-benta e outras apenas águas, na cabeça de uma multidão de negras se sacudindo, já subia a rua do Rosário para a "Lavação da Igreja".
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"
Oi sussa, sussa, suss'eu:

Oi sussa eu, morena ...

“CÊ chupa cana, ispinica o bagaço
Morena bonita, mi dá um abraço”

Engem novo, tá muendo tá...
Engen novo, ta muendo tá...

Naquele ano, para a Festa de Nossa Senhora do Rosário era Rei Velho o cantor lírico JOÃO DE MODESTO e, a sua rainha, a professora DONA NEIDE FREIRE.


"...Cê chupa a cana e ispinica o bagaço, minina bunita, mi dá um abraço: ]

Engém novo, tá moendo tá,
Engém novo, tá moendo tá ...."


-As roletas do tempo são piorras inexoráveis, pois se submetem apenas ao capricho do grupiê e suas fichas, que nunca caem, fazem o desassossego das mulheres sérias, muitas poucas, que se levantam cedo para enfeitar os altares de tantos templos de antigos padroeiros carentes de rezas.

A proteção celestes, com o tempo que nem sempre urge, vai-se rareando e as andorinhas se vêem à marcê do destino.

Não só as andorinhas, borboletas e os demais entes que voam, mas igualmente os quadrúpedes que tranquilamente e inocentemente apascentam no capim gordura do grotão do "Becam", acreditam na proteção dos santos que, de tão antigos, já não se lembram do ofício sagrado de os proteger e, assim desprotegidos é que todos fazem o verão, os que avoam e os que trotam, tanto no verão como no inverno e nas demais estações mas, é no verão que não trotoam nem jogam, nem surrupiam penosas e nem se quedam ao pinho nos enlevos de serenatas, que sismam e ficam receosos das fendas que se abrem no solo seco da imprevidência humana.

Um dia desses monótonos, porém, no Fanado o véu dos tempos se rasgou em raios e ventos e o cordão de andorinhas que ao sol exibiam suas asas azuis, ao longo dos fios elétricos que vinham da Barragem, estes se esticaram e se romperam e fizeram se espalhar em milhões de inocentezinhas pelas barrancas do Becan.

E no lugar em que cada uma delas se fundiu com a terra, pela força da corrente do raio, associada à fúria conduzida nos fios, nasceu um liriozinho espontâneo e cor-de-rosa, o qual tem na ponta de sua haste um botão em forma de coração verde, já sem esperança, enquanto que os antigos santos, cada um em seu altar, nessa hora se assustaram e prometeram que mais nunca deixariam morrer outras andorinhas.
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Porém, já era tarde, pois delas restou apenas um casal que se arribou para as bandas da "mãe" África, de onde originaram e vieram as ancestrais, e de lá prometeram, pelo telégrafo sem fio, nunca mais voltar para compor novas partituras na fiação da luz dessa cidade de assustadoras acontecências, pois não era esta a primeira e, certamente também não seria a última.


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Publicada em 25.06.2009 no BLOG DA IRMANDADE DO ROSÁRIO DE BETIM (VIDE abaixo O LINK "Elisa Maria Mota Coelho")

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