domingo, 16 de agosto de 2009

ZÉ PRETO PARANÁ

O FETICHE DOS SAPATOS FEMININOS




A ex-primeira-dama, mulher muito vaidosa em público, mas no particular doméstico exageradamente econômica (ou, como se diria aos íntimos: munheca de samambaia), ordenou a seu valido, de apelido Zé Melado, fazer uma arrumação em regra no casarão onde moravam, iniciando pelos trastes e cacarecos do porão e quintal, passando-se pela cozinha, despensa e resto da casa, excluídos dessa providência, naturalmente, a sua própria pessoa e a do seu distinto esposo, recomendação que se fazia necessária de vez que o empregado sempre tomava ao pé da letra as ordens recebidas por parte da patroa.



E foram amontoando no terreiro as tralhas, bruacas, esteiras, empanadas, pelegos, trapos de cortinas, cobertores desfiados, roupas velhas, vasilhas enferrujadas, cadeiras quebradas, bacias remendadas e quase tudo que havia dentro daquele museu de inutilidades.



O pobre rapaz, muito bem mandado, estava visivelmente assustado e curioso, ao mesmo tempo, diante daquela tamanha trabalheira e indagando, a si próprio, qual o fim que daria àquele considerável entulho, antes que a dona resolvesse que tudo voltasse a ocupar novamente as gavetas, os armários, a despensa e os quartos que, na verdade, ao serem desocupados, fazia parte do projeto dela de transformá-los em quartos para hóspedes, com a finalidade de engordar, ainda mais, as diversas cadernetas de poupança que mantinha na Minascaixa, cuja agência ficava logo ali ao lado.



E no propósito de arranjar mais um cantinho para mais uma cama, foi despejando quinquilharias, antes guardadas como tesouro, naquele monturo que foi-se formando entre a cobertura do forno e o cercado do galinheiro, até que chegou a vez dos babilaques, revistas forenses, súmulas desatualizadas e velhos compêndios de latim há muito entregues à sanha das traças, bem como uma estante tomada de vários pares de sapatos femininos, de todos os modelos e cores.



Deparando-se diante destes antigos mimos, a velha dama quedou-se e se pôs a lembrar dos tempos áureos em que aqueles lindos objetos, que eram seus presentes prediletos, constituíam-se em moeda de troca que impunha a todos que lhe solicitavam favores, no deslinde de seus interesses junto ao fisco municipal, no rateio de sinecuras e na distribuição do poder administrativo do marido frente à municipalidade.



Tempo bom, aquele pretérito recente, de vacas gordas, roças fartas e cofres cheios!



Tudo porém era diferente e a safra de votos já não era muito favorável ao curral eleitoral da casa grande e o remédio era consolar com as lembranças e cuidar de segurar o que restou daquele tempo de fartura e facilidades.



E a sovina dama, do alto do alpendre, observando cada passo do criado, o que ia cumprindo à risca a sua determinação, atirando ao forno cada objeto descartado, mandou-o imediatamente que poupasse os seus antigos calçados, pois aqueles eram como se fossem troféus e que gostaria de conservá-los.



Num ímpeto de apego àquelas relíquias, juntou-os e os acondicionou, novamente, dentro de um grandc jacá, do qual haviam despejado mais de centenas de garrafas vazias.



Eram, contudo, sapatos fora da moda que jamais seriam aproveitados para calçar aqueles seus pés, sempre tão altivos, que tanto já pisaram, no tempo de glórias, na dignidade e no atrevimento de seus desafetos e também naquela gente chinfrim da cidade que ela tanto detestava e tudo fazia para explorar e extorquir.



A antiga arrogância, que também não conseguia lançar ao forno da iniqüidade, permitia à megera uma força magnética, como a obrigá-la ao resgate daquele lote de sapatos velhos.



Sentia a necessidade extrema de restaurá-los, dar-lhe novos brilhos aos cabedais, com o reforço de novas palmilhas, solados e saltos, o que lhe exigiria gastar uma boa grana, se acaso dispusesse tê-los como novos.



Foi justamente neste momento que lhe ocorreu a idéia de mandá-los ao sapateiro, no que poderia matar dois coelhos com uma única cajadada ou, como era de seu gosto, matar a fome com a vontade comer: há mais de ano e um dia que um de seus locatários, ocupante de um casebre na Rua Direita, ali se instalara com sua tenda de remendão, alegando sempre falta de serviços na tentativa de justificar a contumaz inadimplência, o que de fato era uma realidade da qual ela, como insensível às mazelas sociais, pouco se importava com as razões de quem nada faturava naquela praça onde quase toda a população andava com os pés descalços, pouco havendo de se fazer o oficial que dependesse do resultado de reformar calçados inexistentes, onde poucos cidadãos, como seu ilustre cônjuge, é que podiam se dar ao luxo de andar com os pés protegidos naquelas ruas escuras, sujas e esburacadas.



Contudo, aluguel é aluguel e quem tem casa pra alugar tem por obrigação cobrar o que lhe é devido, nem que seja através de serviços prestados, o que assim estaria de bom tamanho para ambos.



E assim pensado, assim foi que despachou o diligente Zé Melado em direção à tenda do sapateiro, seguindo o mesmo que ia como um burro de carga levando na cacunda o pesado jacá com os ex-preciosos pares de sapatos que um dia desfilaram pelas ruas da cidade despertando a admiração dos homens e a inveja das mulheres de pés rachados, as quais, sob a ótica desprezível daquela anta, não mereciam nem mesmo lamber o chão por ande pisavam aqueles soberanos pés.



Foi logo chegando na sala do casebre, misto de residência e de oficina, entrou com ares de proprietária, ordenando ao Zé Melado que despejasse a carga no meio da loja e que o remendão desse início imediato naquele trabalho que ela desejava fosse sem muita demora.



E o pobre do remendão, refeito do susto da visita e diante da proposta, ou melhor, da exigência, avaliou que aquela poderia ser a oportunidade de, além de saldar a dívida da locação imobiliária, também tirar algum proveito, mesmo que fosse para a propaganda de seu ofício, na esperança de atrair novos fregueses, pelo que haveria de empregar, naquela tarefa, o máximo de dedicação e arte, tendo para isto que comprar o material necessário e até mesmo contratar auxiliares para dar conta de todo aquele recado.



E o que antes era um marasmo, de repente se transformou numa tenda onde o trabalho nunca terminava, varando pelo dia e atravessando altas horas da noite, vendo-se sempre ali a luz acesa para que o serviço fosse realizado conforme a encomenda, o que não passou despercebido ao marido da referida senhora, embora lhe fosse desconhecida a causa da animação que ali era por todos observada.



Mandou, assim, o ex-prefeito, uma carta de cobrança dos referidos alugueres atrasados que, segundo suas expectativas, poderiam agora, com o positivo faturamento da tenda, serem finalmente quitados pelo devedor.



- Meu caro amigo Zé Preto: Não vejo, no momento, como se negará de pagar-me, enfim, as locações de meu imóvel, o que intimo fazê-lo, sem mais tardar, esperando recebê-lo, incontinente, aqui em meu gabinete para tratarmos sobre os termos de um novo contrato, sob pena de determinar, de imediato, o seu necessário despejo.



Ao que foi providenciada a resposta, pela pena de um advogado amigo do sapateiro, desafeto do coletor, para que este, nas entrelinhas, certificasse de que estava bem patrocinado aquele que julgava inadimplente:



- Certamente, prezado amigo senhorio e diligente locador, que lhe devia e meu dever seria o de lhe pagar, não fosse já estar empenhado a quitação dos alugueis vencidos, em razão do serviço já prestado, encomendado que foi por ordem de sua esposa, referentes 65 pares de sapatos diversos cujo restauro já se encontra executado, estando todos, perfeitos, à sua disposição, posto que tem sido o meu trabalho neste último mês, sempre no intuito de ver quitado, como de fato já o tenho, este que foi o nosso compromisso.



O que era determinado pela ex-dama, desde o feliz tempo em que era a primeira-esposa, nunca era ela contestada pelo marido e ele, pacificado e assim conformado, sempre muito cuidadoso para não melindrar-se conjugalmente, temeroso de ferir sucescibilidades em relação a seus segredos de homem galante e aventureiro, deixou como resolvida aquela questão, ao tempo em que, arrefecido o desejo da mulher em ter renovados tantos pares de calçados que lhe seriam supérfluos, também não os foi receber de volta, ignorando-os entre as demais bugigangas do remendão.



Com o passar do tempo Zé Preto viu-se na obrigação de dar destino àqueles vistosos sapados, que em sua vitrine eram cobiçados mas dos quais não podia desfazer, até que, por considerar como finalmente ignorados pela dona, resolveu doá-los.



Escolheu, então, diferentes e variadas beneficiadas com aqueles mimos e ele próprio fez questão de fazer a entrega, a cada uma delas, como se fosse presentes mandados, a cada uma, pelo mulherengo esposo da ex-dama.



Chegado o mês de junho, no dia da missa solene da Festa do Rosário, foi com a maior admiração de quem estava no largo da igreja, no desfile da procissão, que a cidade viu, só que em diferentes pés, aqueles conhecidos sapatos, que antes adornavam os pés mimosos da primeira-dama, agora enfeitando os pés rachados de diferentes e secretos amores do velho alcaide, o qual, sem muito o que fazer, ainda agradeceu ao amigo "Paraná", seu principal confidente, por aquele admirável gesto de amizade, senso de oportunidade, desprendimento, caridade e bom gosto.



E tudo ficou como dantes, e ninguém mais falou em cobrança ou em sapatos reformados, naquele antigo sobrado dos Abrantes.





Zé Preto Paraná, além de sapateiro, foi um grande repentista e animador de bailes onde se apresentava, com seu característico chapéu verde com uma peninha vermelha na fita, seu sorriso enfeitado com um enorme dente de ouro, ao ritmo do seu inconfundível pandeiro, cantando sem microfone as suas rancheiras que enchiam de alegria o Salão de Molas, o "CRIM de Zé Bustika, o carnaval do "Pernil" e os forrós do Clube Popular.



Mais uma de nossas figuras populares que se juntam, lá no céu, a tantos outros, como João da Rocha, Berola, Zé de Chico Tropeiro, Rodolfo Gomes, Zé de Maria Loura, Moreira, Militão, Gabriel Borges, Gentil de Santa, JB Fernandes, Artur Quirino, Plínio, João Batista, Wagner, Sargento Leão e muitos que tanto contribuíram, com o talento e a arte musical, para fazer de nossa terra um lugar tão feliz e agradável de se viver.




geraldo mota
http://geraldomotacoelho.blogspot.com/

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