domingo, 15 de janeiro de 2012

BIG BROTHER BRASIL: BAIXARIA BREGA DO BRASIL


O gosto do mal e o mau gosto


Miguel Reale Júnior (*)


Na sociedade tecnológica se desfaz a noção de espaço, pois, graças à rapidez das informações, o tempo real exerce tirania sobre o espaço real: o mundo está em cada local. Assumem relevo a imediatidade e a interatividade, em razão do que na civilização da pressa não há lugar para a meditação, para a vivência do hábito da leitura e da análise da realidade, para o aprofundamento de dúvidas existenciais.

O habitante do tempo, e não mais do espaço, vive o desenraizamento: está a todo o tempo em toda parte. Como destinatário de completas informações sobre o acontecido a cada instante, não mais se permitem ao homem o silêncio, o recolhimento, a reflexão, a intimidade. Na época do Orkut e do YouTube se torna público o privado e ocorre a rápida obsolescência do up to date. A sociedade torna-se histérica na busca incessante do novo que satisfaça, sôfrega na busca de emoções que não sejam virtuais por meios virtuais.

Dentro dessa atmosfera, as relações interpessoais fundam-se apenas na possibilidade de o outro satisfazer necessidades sensíveis. O outro se torna um objeto e logo cada qual vira também objeto do outro, com perda do recíproco respeito. Este quadro moral levou a duas situações dramáticas: o gosto do mal e o mau gosto.

O gosto do mal está espantosamente relatado no livro La Mort Spetacle - enquête sur l'horreur-realité, de Michela Marzano, ao mostrar a barbárie interior, consistente na busca crescente de registros na internet de filmes sobre sevícias, torturas e até assassinatos reais, efetivamente ocorridos, muitas vezes só para serem divulgados.

O horror vira espetáculo. Hoje se multiplicam as filmagens ou fotografias com celular de cenas de brutalidade contra as pessoas, para puro e simples divertimento. O enforcamento de Saddam Hussein, com o corpo balançando no vazio, correu a internet. Um site francês, "Vídeos de Decapitação", revela Marzano, instalou fórum de discussão acerca da decapitação de Nicholas Berg no Iraque. As reações dos internautas transitaram entre o fascínio e a indiferente discussão sobre a qualidade da filmagem. A tragédia do Iraque tornou-se distração.

Fora estas cenas tornadas públicas por "autoridades", difunde-se o happy slapping (tapa divertido), ou seja, a difusão de filmes e fotografias de agressões à integridade física ou sexual de alguém, em que o sofrimento vira fonte de entretenimento. Lembro, entre tantos relatos de Michela Marzano, a difusão em escola de cenas de violação de uma colegial por diversos colegas, em Nice, em abril de 2007. A violência contra o outro se transmuda em divertimento compartilhado, pelo celular e pela internet.

De outra parte, os meios de comunicação, na busca desenfreada de audiência, recorrem a programações que satisfaçam mais facilmente os instintos do telespectador. Os índices de audiência passam a ser a régua pela qual se faz o juízo positivo ou negativo de um programa televisivo. Rompem-se, na conquista de índices de popularidade, as fronteiras éticas.

Programas como o Big Brother indicam a completa perda do pudor, ausência de noção do que cabe permanecer entre quatro paredes. Desfaz-se a diferença entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado. Assim, expõe-se ao grande público a realidade íntima das pessoas por meios virtuais, com absoluto desvelamento das zonas de exclusividade. A privacidade passa a ser vivida no espaço público.

O Big Brother Brasil, a Baixaria Brega do Brasil, faz de todos os telespectadores voyeurs de cenas protagonizadas na realidade de uma casa ocupada por pessoas que expõem publicamente suas zonas de vida mais íntima, em busca de dinheiro e sucesso. Tentei acompanhar o programa. Suportei apenas dez minutos: o suficiente para notar que estes violadores da própria privacidade falam em péssimo português obviedades com pretenso ar pascaliano, com jeito ansioso de serem engraçadamente profundos.

Mas o público concede elevadas audiências de 35 pontos e aciona, mediante pagamento da ligação, 18 milhões de telefonemas para participar do chamado "paredão", quando um dos protagonistas há de ser eliminado. Por sites da internet se pode saber do dia-a-dia desse reino do despudor e do mau gosto. As moças ensinam a dança do bumbum para cima. As festas abrem espaço para a sacanagem geral. Uma das moças no baile funk bebe sem parar. Embriagada, levanta a blusa, a mostrar os seios. Depois, no banheiro, se põe a fazer depilação. Uma das participantes acorda com sangue nos lençóis, a revelar ter tido menstruação durante a noite. Outra convivente resiste a uma conquista, mas depois de assediada cede ao cerco com cinematográfico beijo no insistente conquistador, que em seguida ridiculamente chora por ter traído a namorada à vista de todo o Brasil. A moça assediada, no entanto, diz que o beijo superou as expectativas. É possível conjunto mais significativo de vulgaridade chocante?

Instala-se o império do mau gosto. O programa gera a perda do respeito de si mesmo por parte dos protagonistas, prometendo-lhes sucesso ao custo da violação consentida da intimidade. Mas o pior: estimula o telespectador a se divertir com a baixeza e a intimidade alheia. O Big Brother explora os maus instintos ao promover o exemplo de bebedeiras, de erotismo tosco e ilimitado, de burrice continuada, num festival de elevada deselegância.

O gosto do mal e o mau gosto são igualmente sinais dos tempos, caracterizados pela decomposição dos valores da pessoa humana, portadora de dignidade só realizável se fixados limites intransponíveis de respeito a si própria e ao próximo, de preservação da privacidade e de vivência da solidariedade na comunhão social. O grande desafio de hoje é de ordem ética: construir uma vida em que o outro não valha apenas por satisfazer necessidades sensíveis.

 

(*) Miguel Reale Junior  (São Paulo, 18 de abril de 1944) é um jurista e professor brasileiro, filho do também jurista Miguel Reale. Foi ministro da Justiça, no governo Fernando Henrique Cardoso. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Júnior tem forte atuação na área do direito penal. É Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, e autor de diversos artigos publicados nos mais diversos periódicos. Atualmente exerce a cátedra de direito penal no Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP. Com a tese "Dos estados de necessidade", doutora-se pela mesma universidade em 1971. Foi um membro da Comissão Elaboradora da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal entre 1980 e 1984, e é um membro honorário da cadeira nº 2 da Academia Paulista de Letras bem como da Real Academia de Jurisprudência y Legislacion madrilenha.

 


acesse o BLOG DE GERALDO MOTA
ASSINE O ABAIXO ASSINADO PELA INSTALAÇÃO DA UFVJM EM MINAS NOVAS


Nenhum comentário:

CONFIRA AQUI OS LIVROS DE MINHA BIBLIOTECA FÍSICA

Cursos Online é Cursos 24 Horas

LIVROS RECOMENDADOS

  • ANÁLISES DE CONJUNTURA: Globalização e o Segundo Governo FHC - (José Eustáquio Diniz Alves /Fábio Faversani)
  • ARTE SACRA - BERÇO DA ARTE BRASILEIRA (EDUARDO ETZEL)
  • AS FORÇAS MORAIS - (José Ingenieros)
  • CONTOS - (Voltaire)
  • DICIONÁRIO DE FANADÊS - Carlos Mota
  • DOM QUIXOTE DE LA MANCHA - (Cervantes)
  • ESPLÊNDIDOS FRUTOS DE UMA BANDEIRA VENTUROSA - (Demósthenes César Jr./ Waldemar Cesar Santos)
  • EU E MARILYN MONROE & O OUTRO- CARLOS MOTA
  • FRAGMETOS - (Glac Coura)
  • HISTÓRIAS DA TERRA MINEIRA - (Prof. Carlos Góes)
  • http://www.strategosaristides.com/2010/12/cronicas-do-mato.html
  • IDAS E VINDAS - (Rosarinha Coelho)
  • MOSÁICO - (Glac Coura)
  • O CAMINHANTE - (José Transfiguração Figueirêdo)
  • O DIA EM QUE O CAPETA DESCEU NA CIDADE DE MINAS NOVAS - (João Grilo do Meio do Fanado)
  • O MITO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO - (Celso Furtado)
  • O NOME DA ROSA - (Umberto Eco)
  • O PRÍNCIPE - (Maquiavel)
  • O SEGREDO É SER FELIZ - ROBERTO SHINYASHIKI

ORIGEM DOS ACESSOS PELO MUNDO

Arquivo do blog