A “DERETORIA”
Nas minhas andanças pelo Vale do
Jequitinhonha, na década de 1980, como funcionário de carreira do Banco do
Brasil, uma das minhas atribuições funcionais, talvez pelo fato de ser natural
daquela região e conhecer de perto a maioria das comunidades, com seus
problemas, carências e potencialidades, bem como em razão da minha
disponibilidade em participar de ações sociais daquela natureza, eu fui
escolhido para ser um dos coordenadores do FUNDEC, (Fundo de
Desenvolvimento Comunitário), um programa do Banco que tinha como um de seus
objetivos contribuir com as administrações municipais na elaboração,
desenvolvimento e financiamento de pequenos projetos com base em PDCIs – Plano de Desenvolvimento
Comunitário Integrado. Esse programa era muito popular, entre a população, pois
priorizava as ações participativas de famílias, escolas, sindicatos, igrejas e
centros comunitários, onde todos podiam opinar e serem ouvidos em suas
reivindicações, o que muito contribuiu, naquela época de muita seca e falta de
recursos, para encaminhar boas propostas e solucionar muitos dos problemas mais
imediatos que afligiam os produtores rurais, possibilitando parcerias,
convênios e ações conjuntas com outras entidades, além de conceder ajuda
financeira, a fundo perdido, além de orientar e incentivar o acesso ao crédito
rural a partir de linhas de custeio agrícola com base no VBC ( Valores Básicos
de Custeio) e outros financiamentos rurais, em condições de prazos e taxas de
juros bem favoráveis, assim como indicar aos agro-pecuaristas alguns investimentos
mais simples e factíveis que podiam atender à maior parte das necessidades do
homem do campo, sem a exigência de muita burocracia, como regularidade de
documentação dos imóveis e outras liberalidades contratuais permitidas pelas instruções
governamentais de então, naquele momento em que quase não havia exigência de qualquer garantia
real como cláusula para a formatação dos instrumentos de crédito.
As reuniões eram muito
democráticas, onde participavam, além do prefeito municipal, técnicos da
prefeitura, vereadores, sindicalistas e representantes de entidades
governamentais, além das lideranças comunitárias de todas as tendências
religiosas, políticas e culturais.
Numa dessas oportunidades, certa
vez estava participando de uma reunião de trabalho no lugar denominado
“Cajamunum”, localizado próximo às cabeceiras do Córrego da Água Limpa, nas
divisas dos municípios de Chapada do Norte e Berilo, onde as demandas se concentravam na necessidade de buscar alternativas ao combate à fome e à mais absoluta indigência que, de resto, assolava toda a região. O encontro, coordenado por
um colega que naquele evento estava representando o gerente geral da Agência de
Minas Novas, estava sendo realizado na Escola Municipal daquela localidade e,
por esta razão, foram convocadas aquelas pessoas de mais representatividade do
lugar, para a necessária formação da mesa, entre elas foi anunciado o nome do “professor
Massu”, conforme constava da listagem que lhe haviam apresentado pelos organizadores do encontro,
nada que deveria ser convencional ou cerimonioso, pois o que se pretendia era a
objetividade e a produtividade em seus desdobramentos, como resultado das ações
que se pretendiam ver urgentemente realizadas, face à grave situação dos moradores.
Naquela “mesa de trabalho” todos os
convocados tomaram seus lugares, com exceção do referido professor Massu que
permaneceu assentado em um banquinho, lá no fundo da sala, cuja atitude não
passou despercebida, mas que foi considerada como uma maneira dele melhor
observar, como dirigente daquela escola, o andamento de todos os procedimentos
daquele encontro, de que ele próprio deveria estar se sentindo o anfitrião e,
naquele ponto, estar pronto para atender a qualquer eventualidade.
Passou-se imediatamente à discussão
dos assuntos listados na pauta, onde várias propostas foram apresentadas,
analisadas, discutidas e assim chegou-se ao termo da reunião, considerada muito
produtiva por todos, quando se colocou franca a palavra aos que dela desejassem
fazer uso.
O prefeito falou de sua satisfação
em ver bem encaminhadas as propostas, os técnicos se comprometeram a dar o
melhor encaminhamento aos trabalhos de elaboração dos projetos que foram
discutidos, até que chegou o momento e a vez de falar a liderança local, a quem
competia agradecer a presença dos convidados, assim como fazer o encerramento
daquele evento, conforme era de costume.
Foi justamente nesse ponto que o
professor Massu, ao ser mencionado, demonstrando muita contrariedade, saiu lá
do fundo da sala e se aproximou, assim se dirigindo, com suas palavras, aos
componentes da mesa.
- Senhores e senhoras: Tá tudo muito certo, mas de uma coisa eu tenho que
recramar e aqui deixar bem craro, principalmente para o “gerento do banco”, qui
pricisa sabê qui eu num sou “professô” mais não. Eu agora sou é o “deretor”
aqui dessa “iscola”, numiado pelo prefeito, e da próxima veiz eu exijo mais
respeito com a minha pessoa, quando acontecê nova reunião neste local.
Foi então que todos entenderam o
motivo daquele retraimento inicialmente demonstrado pelo “mestre”, desde o
início da reunião, quando ele se mostrava “macambúzio”, tendo ficado completamente
mudo durante todo o tempo, até naquela hora em que fez o seu desabafo, diante
de tamanha “desfeita à sua otoridade”, cometida por aquele funcionário do banco
que deveria ter usado o tratamento correto que, no entendimento dele, deveria
ser o de diretor e não de professor.
Para que o mal entendido fosse
desfeito, o padre José Nuno, saudoso vigário de Berilo, que ali estava presente
e que era uma pessoa muito equilibrada, bondosa e respeitada pela sua cultura e
pelas qualidades de bom sacerdote e líder religioso de toda a região,
adiantou-se e, dirigindo-se ao “deretor”, disse-lhe que ele se tranquilizasse,
pois não havia qualquer ofensa, pelo contrário, ele deveria até se sentir
honrado e lisonjeado com o tratamento recibo, que jamais poderia ser
considerado ofensivo por alguém, a não ser que talvez houvesse outras
motivações para aquele descontentamento, pois até mesmo o Imperador do Brasil,
o grande Dom Pedro II, em seus dias de glória, ele que era um soberano muito
justo e querido pelo povo brasileiro, certa vez afirmou que, se ele próprio não
fosse o Rei, desejaria que, ao invés de “majestade”, todos os súditos o
tratassem pelo título de professor.
O remendo, porém, saiu pior que o
soneto, pois o tal “deretor” que, também naquela comunidade rural, era o líder de
uma denominação evangélica, dizendo-se “pastor”, recebeu como ofensa maior
aquele “sermão” de um “simples padre”, na avaliação dele, no que ele deixou bem
claro que não poderia aceitar de forma alguma e, imediatamente, pediu que todos
se retirassem de “sua” escola, pois ali era ele quem mandava e onde não
aceitava o atrevimento de quem quer que desejasse diminuí-lo perante os moradores
daquele lugar.
Pobres comunidades, carentes não só
de recursos materiais, mas também de outros valores, muito mais importantes,
como lideranças legítimas e bem orientadas, não somente motivados pelo orgulho
e pela sede de mando e de poder, mas pela humildade e pela vontade de produzir
trabalho e progresso de forma solidária, isenta de rancores e motivada apenas
pela boa vontade de servir, de ser útil e fiel à causa defendida e de ser
instrumento de paz e de progresso.
Contudo, ainda hoje, mesmo em
centros mais adiantados, muitas pessoas acreditam que podem ser “diretores”, e
alguns se arvoram alçar cargos muito mais além de suas mínimas possibilidades,
julgando-se preparados para exercer funções da maior relevância, conseguindo a
elas ser promovidos e escolhidos sem jamais ter sido alunos ou, na melhor das
hipóteses, sem ter algum dia “alisado um banco de escola” ou mesmo ter sido um
simples professor.
E alguns energúmenos de nosso país,
sem qualquer autocrítica, ainda nos dias hodiernos se encantam com títulos de “doutores
honoris causa”, como se essa homenagem não fosse uma outorga à
dignidade do cargo exercido, mas em razão de méritos pessoais, no que são
levados a acreditar, os inocentes úteis, quando incensados nesse engodo e
sempre incentivados a assim creem na própria capacidade e sabedoria, pela ação
calculada dos insensatos, oportunistas e espertos bajuladores, verdadeiros “ratos que tiram sardinha com a mão de gato”,
os quais lhe cercam de ilusões e que desejam é tirar proveitos particulares da
sua indisfarçável condição de incompetência, ignorância e falta de bom senso.
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