sábado, 16 de janeiro de 2016

A FAMOSA SAPUCAIEIRA DE MINAS NOVAS

  



RUA DAS PRETAS FORRAS

A Rua das Pretas Forras tem um único quarteirão, ou melhor, é uma rua bem curta que começa na Quintino Bocaiuva, desembocando-se na Praça Benedito Valadares, logradouro mais conhecido como Largo da Cadeia.

Esse logradouro tem pouco mais de uma dezena de casas baixas e muito antigas, onde moraram várias famílias de ex-escravos, como a da "sinhá" Etelvina do Mirante, que conheci já bem idosa nos anos cinquenta, a qual liderava uma casa cheia de filhas e netas, todas dedicadas aos trabalhos de fiadeiras, tecelãs, bordadeiras e, principalmente, a Antônia, de todas a melhor doceira que, pelas ruas da cidade, vendia merendês, ambrosias e o doce de leite pastoso dos quais nunca, além deles, provei  outros iguais em toda minha vida.

Lembro-me muito bem, passando por ali, da profusão de fusos, das rocas, das almofadas de bilros, dos imensos bastidores de crivo, dos teares de pedal e dos coloridos novelos de pavios que rolavam pelas calçadas, aguardando a vez de se transformarem em cobertas, mantas e tapetes.

Aquela rua, além do cenário de intensa atividade artesanal ali desenvolvida pelas moradoras, era também  a lúgubre passarela por onde, invariavelmente, aquelas moradores assistiam ao triste desfile dos presos, que escoltados, algemados ou amarrados que nem animais destinados ao corte, eram conduzidos para as prisões que ainda hoje existem na famosa cadeia da velha comarca.

E eram aquelas humildes e  boas mulheres, que moravam e trabalhavam nessa rua que, às vezes, se intercediam em socorro de algum infeliz, implorando a favor deles, pedindo, e até mesmo se arremessando contra os soldados, na tentativa de impedir torturas e espancamentos.

Também eram elas que se dirigiam, correndo aflitas às casas dos parentes, para informar aos inocentes familiares sobre a prisão de  algum ente querido, eventualmente envolvido em bebedeiras, em escaramuças, pândegas e outras enrascadas por eles cometidas durante à noite, lá na rua do Fogo ou num dos mocós da Mil e Quarenta.

A cadeia de Minas Novas era o único estabelecimento prisional, em toda região, que recebia presos, condenados ou não, oriundos de todas as comunidades do imenso termo judicial. E ali o regime era duro, onde os presos não tinham boa vida como hoje, sendo todos submetidos ao rigoroso regime em que eram obrigados a cuidar dos serviços de limpeza, não só das imundices daquele tugúrio, entre elas as de suas próprias celas, mas, também dos demais infelizes que ali eram recolhidos. E mesmo aqueles presos que não ofereciam periculosidade, durante o turno do dia, eram encaminhados, sob vigilância da escolta policial, para cuidarem dos logradores públicos, capinando ruas, recolhendo lixo e muitos deles, que se consideravam até privilegiados, para prestarem serviços gratuitos a particulares nos quintais das casas de famílias que os compensavam com sobras de comidas, restos de roupas, agasalhos e outros míseros benefícios.

Como na cidade não havia serviço de água canalizada e nem existia, mesmo na cadeia, qualquer vaso sanitário, diariamente aqueles presos mais perigosos, ou os fujões e os desobedientes, eram todos obrigados a seguirem a pé, sempre acorrentados uns aos outros, até à barra do Ribeirão Bonsucesso, conduzindo na cabeça os potes de barro, onde os companheiros, durante a noite, faziam suas necessidades fisiológicas e, depois da própria higienização corporal e da completa limpeza daquele fétido vasilhame, para nele trazerem água para o irrigamento da horta e do bem cuidado jardim que havia na referida praça Rio Branco.
 
Devido a esse rigor, nessa época o índice de criminalidade na comarca era relativamente baixo e, quase sempre, era com o maior pavor que se deparavam aqueles que, por alguma razão legal, para ali eram encaminhados.

Era terrível a fama da cadeia de Minas Novas onde, a exemplo do que sempre acontece, eram punidos os criminosos de origem humilde, pois o braço da Lei jamais alcançava os privilegiados da sociedade, protegidos pelos coronéis de patente comprada na Guarda Nacional.

E assim, mesmo os presos mais valentões, os mais irresponsáveis e os incautos, todos tremiam de medo principalmente quando, debatendo-se, ao passarem pela rua das Pretas Forras descortinavam lá do outro lado do largo o austero e temido casarão, em estilo clássico, tendo ao fundo a centenária e frondosa Sapucaieira.

Os moradores daquela rua já eram acostumados com as tétricas procissões, dos gritos de dor dos conduzidos e dos comoventes apelos de clemência de populares e familiares.

Um fato, porém, marca a lembrança, ainda hoje muito viva, principalmente de muitos como eu que presenciei uma parte de sua prisão: Surgiu na região do Setúbal um temido bandoleiro, atrevido e violento que desafiava a todos, desrespeitando às famílias e colocando em pânico a população, inquietando toda sociedade. A fama desse arruaceiro se espalhara e até mesmo os policiais já se sentiam amedrontados, tantas eram as notícias das aprontações e peripécias desse indivíduo. E foram várias as tentativas, em muitas diligências, com o objetivo de captura desse malandro, que já se gabava de ser ligeiro, liso, respeitado e perigoso.

O destacamento, então, era composto de sete policiais a pé, armados de fuzis e baionetas caladas, comandados pelo sargento José Leão, rigoroso militar que, de imediato, convocou a sua pequena tropa, reuniu-os no pátio da cadeia, quando distribuiu aos cinco soldados as armas e as munições, encarregando ao cabo Pedro de Cirilo que,  juntamente do carcereiro Antônio Domingos e do delegado "calças-curtas" Raul Marcolino, de se encarregarem da vigilância da cadeia e da segurança geral da cidade, e assim providenciado, partiu a diligência para a região do Rio Setúbal.

E seguiu, destemido, à frente dos seus soldados Zé de André, Joãozinho Preto, José de Figueiredo, João Moura e Serafim Abreu, todos muito apreensivos, sob a maior expectativa dos que ficaram, para cumprirem o mandado de prisão, lá no povoado de Baixa Quente, de onde deveriam, de qualquer forma, capturar o biltre que estava desafiando o poder judicial da comarca.

Chegando ao destino, lá pegaram o maganão, em flagrante, depois de um quebra-quebra que o bandido havia promovido na venda de Quincas Fogueteiro, este comerciante um homem pacato que teve de se refugiar no mato, lá na beira do Córrego do Ouro, durante toda a noite com sua família, todos ameaçados de morte e em completa polvorosa.

João Moura, jovem soldado que sempre foi muito corajoso e bem treinado, desde os tempos em que se ingressou nas fileiras do Exército, lá no seu estado natal da Paraíba, de onde veio, depois,  para se casar e que aqui em Minas Novas resolveu se alistar na gloriosa Polícia Militar, já sabendo manejar bem suas armas e principalamente o seu laço, conhecimentos que o permitiram dominar e prender o tal valentão, colocando-lhe uma peia e uma algema. 

E foi assim desta forma que, com a ajuda dos demais praças, apaziguaram-se as comunidades do Setúbal, Granjas e Crizomja e retornaram, naquele mesmo dia à sede conduzindo o delinquente  atrevido, já subjugado, devidamente amarrado como um boi bravo, levando-o em direção do presídio, quase que arrastado, tamanha era a sua resistência.

E seguia aquele comboio de policiais, pela estrada, tendo à frente o garboso sargento e o festejado praça João Moura, segurando a ponta da corda, este que passou a ser, a partir daquela data, a personificação do respeito, a garantia da ordem e o prestígio da segurança pública local.

Já, na cidade, as ruas desde a Gruta até à Barra, a agitação tomou conta, todos correndo de um lado para outro, para ver melhor o momento da chegada do preso. A multidão se acotovelava, próxima à cadeia, para assistir à chegada do temeroso bandido.

O cortejo tão esperado foi descendo rua abaixo, passando pelo Rosário, depois pela rua Direita, pelo Largo das Cavalhadas e, chegando no início das Pretas Forras, ali o preso endureceu e se empacou tão-logo viu, à sua frente, a tal cadeia e este, apavorado com o que lhe esperava,  agindo num ímpeto de fúria e de último esforço, mesmo todo amarrado e algemado, das peias se desvencilhou e se investiu sobre o soldado Zé de Figueiredo e conseguiu arrancar-lhe a baioneta, aplicando-a imediatamente em sua própria barriga, despejando naquelas ruas empoeiradas as suas entranhas e caindo sobre a poça formada com o sangue que jorrava aos borbotões daquela terrível sangria.

E o valentão do Brinco, esse era seu apelido, mais nunca brincou com a lei.

Não chegou a ser colocado na cadeia, como todos do município queriam vê-lo, tendo preferido ficar eternamente preso em uma cova rasa que lhe fora preparada na calçada, pelo lado de fora do cemitério da cidade, pois lá na Baixa-Quente os moradores não quiseram recebê-lo nem depois de morto.

E tudo voltou, na maior paz e calmaria, com a velha rotina da pacata cidade!

A velha sapucaiaeira sempre foi muito admirada, quando florida; mas, por várias oportunidades fez valer a fama de servir de sombra para as tenebrosas celas daquele prédio tão bonito por fora, mas tão lúgubre pelos seus corredores.

Fatos relacionados a esse lugar, me lembra de famosos presos, como o amigo DÉ CHINA, ainda de seu tempo de lambanças, carraspanas e esbórnias, lá em Minas Novas, é que quase todo final de semana ele era preso, recolhido ao SOLAR DA SAPUCAIEIRA. Certa vez ele chegou à sua cela costumeira e, logo que ele se instalou, imediatamente chamou o carcereiro e lhe deu a maior bronca, querendo saber quem é que estava ocupando o seu prego, lugar tradicional em que pendurava o seu boné, alegando usurpação de propriedade particular e de seus direitos adquiridos.

DOGA era outro preso "gente boa", cuja fama de bandoleiro decorria da esperteza de sua patroa, a saudosa "Dona Valça, como uma de suas estratégias na defesa de suas imensas glebas na região da Baixa Quente. Depois de preso e engaiolado debaixo da Sapucaia, o velho galo virou galinha e piava baixo perto de Mané Pepino.

Baltazar, negro, analfabeto, pobre e idoso, ficou preso, sem culpa formada, sem advogado e sem julgamento, por mais de 10 anos ocupando uma cela na Sapucaieira. Quando, enfim, levaram-no perante a MM. Juíza, Drª. Maria Celeste Porto Teixeira, ao ser  interrogado, na forma da lei mas em palavras que ele pudesse entender, lhe foi perguntado se tinha ciência sobre os fatos delituosos a ele imputados, ao que ele disse nada saber, mas que estava muito satisfeito no lugar onde estava arranchado e que os "mininos", referindo-se aos soldados, eram com ele muito bondosos. A magistrada, imediatamente certificou-se de que estava diante de uma dilemática situação e determinou que o colocassem em liberdade, pois o caso deveria ser resolvido pelas esferas da psiquiatria; O preso, porém, vendo-se livre indignou-se e passou a protestar pela sua volta ao presídio, querendo saber onde ele receberia, de graça, um prato de comida. E saiu do Fórum, sem escoltas, apresentando-se novamente ao carcereiro Antônio Domingos, a quem chamava de "padrinho", pedia a bênção e lhe beijava as mãos.

Quando aconteceu o TERCEIRO FESTIVALE, que foi organizado no Largo das Cavalhadas, em Minas Novas, os presos, lá da Sapucaieira, que fica próxima, puderam ouvir as canções classificadas; Entre os presos estava MANÉ PEPINO, que era o "cão chupando manga", mas um incrível repentista e violeiro. E este, que já havia conquistado a amizade do delegado, Dr. Potiguara, solicitou e foi atendido no seu desejo de se apresentar no palco do festival. E o sucesso foi tamanho que seu "show" quase que inviabilizou o julgamento final do certame, cujos jurados queriam premiá-lo, mesmo que não tivesse devidamente inscrito.

BATALZAR, que nunca concordou com a possibilidade de viver em  liberdade, longe da sua aprazível Sapucaieira, ali ele era muito querido pelos demais companheiros de prisão que o encarregavam pela  limpeza, de cozinhar, de dar recados e de fazer compras no comércio, missão que ele cumpria a rigor, ao ponto de, muitas das vezes, o próprio carcereiro deixar com ele as chaves da cadeia, quando era obrigado a permanecer naqueles locais mais agradáveis que eram as vendas e os botecos. Diariamente, depois de cumpridas suas “obrigações diárias”, o referido preso tomava seu banho, vestia um velho paletó escuro, calçava suas surradas botas e seguia, à tardezinha, para a Igreja do Amparo, onde assistia religiosamente a Missa do Padre Emiliano, quando também comungava e depois voltava para a Sapucaieira, onde jantava a sua marmita que ficava lhe aguardando. Nesse tempo, já não era mais a juíza Dr. Maria Celeste, mas o Dr. Alvanato Almeida que, sendo também fidelíssimo católico, também não perdia uma missa do Padre Emiliano, às vezes se assentando no mesmo banco e ao lado do Batalzar, com quem foi-se afeiçoando. 


Numa Festa de Santos Reis, o bondoso vigário estava pregando sobre os Três Reis Magos, BALTAZAR, GASPAR E MELCHIOR e lembrou aos fiéis que justamente o Baltazar, embora sua nobreza, era um cidadão negro, assim como ele próprio e também o delegado Dr. Portiguara, mas que o Menino Jesus, na sua inocência, eterna bondade e justiça, não fazia distinção de cor e de qualquer outra diferença entres as pessoas e, assim, foi discorrendo sobre muitas outras coisas bonitas que maravilharam as ideias do pobre do Batalzar. 

Terminada a missa e já saindo da igreja, o preso abordou o juiz e lhe disse que iria ao fórum para que lhe fosse nomeado um advogado dativo. O Dr. Alvanato, logo imaginou que, finalmente, o preso iria requerer sua soltura. Contudo, no dia seguinte, foi nomeado o Dr. Zezito Coelho que o chamou ao escritório para que pudessem fazer a petição, quando ficou sabendo que o desejo do preso não era ver-se liberto, mas, sim, com o nome devidamente corrigido, pois o Padre Emiliano assim o havia aconselhado. E ambos, advogado e cliente, dirigiram-se ao Cartório de Tião Barbosa para fazer o correto registro do nome de BATALZAR, que passou a assinar, com muita dificuldade, o nome de batismo que era BALTAZAR DOMINGO REIS, nascido em 06 de janeiro de 1916, o qual, se fosse vivo, teria completado 100 ANOS de idade.



 

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