RUA DAS PRETAS FORRAS
A Rua das Pretas Forras tem um
único quarteirão, ou melhor, é uma rua bem curta que começa na Quintino
Bocaiuva, desembocando-se na Praça Benedito Valadares, logradouro mais
conhecido como Largo da Cadeia.
Esse logradouro tem pouco mais
de uma dezena de casas baixas e muito antigas, onde moraram várias famílias de
ex-escravos, como a da "sinhá" Etelvina do Mirante, que conheci já
bem idosa nos anos cinquenta, a qual liderava uma casa cheia de filhas e netas,
todas dedicadas aos trabalhos de fiadeiras, tecelãs, bordadeiras e,
principalmente, a Antônia, de todas a melhor doceira que, pelas ruas da
cidade, vendia merendês, ambrosias e o doce de leite pastoso dos quais
nunca, além deles, provei outros iguais em toda minha vida.
Lembro-me muito bem, passando
por ali, da profusão de fusos, das rocas, das almofadas de bilros, dos imensos
bastidores de crivo, dos teares de pedal e dos coloridos novelos de
pavios que rolavam pelas calçadas, aguardando a vez de se transformarem em
cobertas, mantas e tapetes.
Aquela rua, além do cenário de
intensa atividade artesanal ali desenvolvida pelas moradoras, era também a
lúgubre passarela por onde, invariavelmente, aquelas moradores assistiam ao
triste desfile dos presos, que escoltados, algemados ou amarrados que nem
animais destinados ao corte, eram conduzidos para as prisões que ainda hoje
existem na famosa cadeia da velha comarca.
E eram aquelas humildes
e boas mulheres, que moravam e trabalhavam nessa rua que, às vezes, se
intercediam em socorro de algum infeliz, implorando a favor deles, pedindo, e até
mesmo se arremessando contra os soldados, na tentativa de impedir torturas
e espancamentos.
Também eram elas que se
dirigiam, correndo aflitas às casas dos parentes, para informar aos inocentes
familiares sobre a prisão de algum ente querido, eventualmente envolvido
em bebedeiras, em escaramuças, pândegas e outras enrascadas por eles cometidas
durante à noite, lá na rua do Fogo ou num dos mocós da Mil e Quarenta.
A cadeia de Minas Novas era o
único estabelecimento prisional, em toda região, que recebia presos, condenados
ou não, oriundos de todas as comunidades do imenso termo judicial. E ali o
regime era duro, onde os presos não tinham boa vida como hoje, sendo todos
submetidos ao rigoroso regime em que eram obrigados a cuidar dos serviços de limpeza,
não só das imundices daquele tugúrio, entre elas as de suas próprias
celas, mas, também dos demais infelizes que ali eram recolhidos. E mesmo
aqueles presos que não ofereciam periculosidade, durante o turno do dia, eram
encaminhados, sob vigilância da escolta policial, para cuidarem dos
logradores públicos, capinando ruas, recolhendo lixo e muitos deles, que se
consideravam até privilegiados, para prestarem serviços gratuitos a
particulares nos quintais das casas de famílias que os compensavam com sobras de
comidas, restos de roupas, agasalhos e outros míseros benefícios.
Como na cidade não havia
serviço de água canalizada e nem existia, mesmo na cadeia, qualquer vaso
sanitário, diariamente aqueles presos mais perigosos, ou os fujões e os
desobedientes, eram todos obrigados a seguirem a pé, sempre acorrentados uns
aos outros, até à barra do Ribeirão Bonsucesso, conduzindo na cabeça os potes
de barro, onde os companheiros, durante a noite, faziam suas necessidades
fisiológicas e, depois da própria higienização corporal e da completa limpeza
daquele fétido vasilhame, para nele trazerem água para o irrigamento da horta e
do bem cuidado jardim que havia na referida praça Rio Branco.
Devido a esse rigor, nessa
época o índice de criminalidade na comarca era relativamente baixo e, quase
sempre, era com o maior pavor que se deparavam aqueles que, por alguma razão
legal, para ali eram encaminhados.
Era terrível a fama da cadeia de Minas Novas onde, a exemplo do que sempre acontece, eram punidos os criminosos de origem humilde, pois o braço da Lei jamais alcançava os privilegiados da sociedade, protegidos pelos coronéis de patente comprada na Guarda Nacional.
E assim, mesmo os presos mais
valentões, os mais irresponsáveis e os incautos, todos tremiam de medo principalmente
quando, debatendo-se, ao passarem pela rua das Pretas Forras descortinavam lá
do outro lado do largo o austero e temido casarão, em estilo clássico, tendo ao
fundo a centenária e frondosa Sapucaieira.
Os moradores daquela rua já
eram acostumados com as tétricas procissões, dos gritos de dor dos conduzidos e
dos comoventes apelos de clemência de populares e familiares.
Um fato, porém, marca a
lembrança, ainda hoje muito viva, principalmente de muitos como
eu que presenciei uma parte de sua prisão: Surgiu na região do Setúbal um
temido bandoleiro, atrevido e violento que desafiava a todos, desrespeitando às
famílias e colocando em pânico a população, inquietando toda sociedade. A fama
desse arruaceiro se espalhara e até mesmo os policiais já se sentiam amedrontados,
tantas eram as notícias das aprontações e peripécias desse indivíduo. E foram
várias as tentativas, em muitas diligências, com o objetivo de captura desse
malandro, que já se gabava de ser ligeiro, liso, respeitado e perigoso.
O destacamento, então, era composto
de sete policiais a pé, armados de fuzis e baionetas caladas, comandados pelo
sargento José Leão, rigoroso militar que, de imediato, convocou a sua pequena
tropa, reuniu-os no pátio da cadeia, quando distribuiu aos cinco soldados as
armas e as munições, encarregando ao cabo Pedro de Cirilo que,
juntamente do carcereiro Antônio Domingos e do delegado
"calças-curtas" Raul Marcolino, de se encarregarem da vigilância da
cadeia e da segurança geral da cidade, e assim providenciado, partiu a diligência
para a região do Rio Setúbal.
E seguiu, destemido, à frente
dos seus soldados Zé de André, Joãozinho Preto, José de Figueiredo, João Moura
e Serafim Abreu, todos muito apreensivos, sob a maior expectativa dos que
ficaram, para cumprirem o mandado de prisão, lá no povoado de Baixa Quente, de
onde deveriam, de qualquer forma, capturar o biltre que estava desafiando o
poder judicial da comarca.
Chegando ao destino, lá
pegaram o maganão, em flagrante, depois de um quebra-quebra que o bandido havia
promovido na venda de Quincas Fogueteiro, este comerciante um homem pacato que
teve de se refugiar no mato, lá na beira do Córrego do Ouro, durante toda a
noite com sua família, todos ameaçados de morte e em completa polvorosa.
João Moura, jovem soldado que
sempre foi muito corajoso e bem treinado, desde os tempos em que se ingressou
nas fileiras do Exército, lá no seu estado natal da Paraíba, de onde veio,
depois, para se casar e que aqui em Minas Novas resolveu se alistar na
gloriosa Polícia Militar, já sabendo manejar bem suas armas e principalamente o
seu laço, conhecimentos que o permitiram dominar e prender o tal valentão,
colocando-lhe uma peia e uma algema.
E foi assim desta forma que, com a ajuda dos demais praças, apaziguaram-se as comunidades do Setúbal, Granjas e Crizomja e retornaram, naquele mesmo dia à sede conduzindo o delinquente atrevido, já subjugado, devidamente amarrado como um boi bravo, levando-o em direção do presídio, quase que arrastado, tamanha era a sua resistência.
E foi assim desta forma que, com a ajuda dos demais praças, apaziguaram-se as comunidades do Setúbal, Granjas e Crizomja e retornaram, naquele mesmo dia à sede conduzindo o delinquente atrevido, já subjugado, devidamente amarrado como um boi bravo, levando-o em direção do presídio, quase que arrastado, tamanha era a sua resistência.
E seguia aquele comboio de policiais, pela estrada, tendo à frente o garboso sargento e o festejado praça João Moura, segurando a ponta da corda, este que passou a ser, a partir daquela data, a personificação do respeito, a garantia da ordem e o prestígio da segurança pública local.
Já, na cidade, as ruas desde a
Gruta até à Barra, a agitação tomou conta, todos correndo de um lado para
outro, para ver melhor o momento da chegada do preso. A multidão se
acotovelava, próxima à cadeia, para assistir à chegada do temeroso bandido.
O cortejo tão
esperado foi descendo rua abaixo, passando pelo Rosário, depois pela rua
Direita, pelo Largo das Cavalhadas e, chegando no início das Pretas Forras, ali
o preso endureceu e se empacou tão-logo viu, à sua frente, a tal cadeia e este,
apavorado com o que lhe esperava, agindo num ímpeto de fúria e de último
esforço, mesmo todo amarrado e algemado, das peias se desvencilhou e se investiu
sobre o soldado Zé de Figueiredo e conseguiu arrancar-lhe a baioneta,
aplicando-a imediatamente em sua própria barriga, despejando naquelas ruas
empoeiradas as suas entranhas e caindo sobre a poça formada com o sangue que
jorrava aos borbotões daquela terrível sangria.
E o valentão
do Brinco, esse era seu apelido, mais nunca brincou com a lei.
Não chegou a ser colocado na
cadeia, como todos do município queriam vê-lo, tendo preferido ficar
eternamente preso em uma cova rasa que lhe fora preparada na calçada, pelo
lado de fora do cemitério da cidade, pois lá na Baixa-Quente os moradores não quiseram
recebê-lo nem depois de morto.
E tudo voltou, na maior paz e
calmaria, com a velha rotina da pacata cidade!
A velha sapucaiaeira sempre
foi muito admirada, quando florida; mas, por várias oportunidades fez valer a
fama de servir de sombra para as tenebrosas celas daquele prédio tão bonito por
fora, mas tão lúgubre pelos seus corredores.
Fatos relacionados a esse lugar, me lembra de famosos presos, como o amigo DÉ CHINA, ainda de seu tempo de
lambanças, carraspanas e esbórnias, lá em Minas Novas, é que quase todo final
de semana ele era preso, recolhido ao SOLAR DA SAPUCAIEIRA. Certa vez ele
chegou à sua cela costumeira e, logo que ele se instalou, imediatamente chamou
o carcereiro e lhe deu a maior bronca, querendo saber quem é que estava
ocupando o seu prego, lugar tradicional em que pendurava o seu boné, alegando
usurpação de propriedade particular e de seus direitos adquiridos.
DOGA era outro preso "gente boa", cuja fama de bandoleiro
decorria da esperteza de sua patroa, a saudosa "Dona Valça, como uma de
suas estratégias na defesa de suas imensas glebas na região da Baixa Quente.
Depois de preso e engaiolado debaixo da Sapucaia, o velho galo virou galinha e
piava baixo perto de Mané Pepino.
Baltazar, negro, analfabeto, pobre e idoso, ficou preso, sem
culpa formada, sem advogado e sem julgamento, por mais de 10 anos ocupando uma
cela na Sapucaieira. Quando, enfim, levaram-no perante a MM. Juíza, Drª. Maria
Celeste Porto Teixeira, ao ser interrogado,
na forma da lei mas em palavras que ele pudesse entender, lhe foi perguntado se
tinha ciência sobre os fatos delituosos a ele imputados, ao que ele disse nada
saber, mas que estava muito satisfeito no lugar onde estava arranchado e que os
"mininos", referindo-se aos soldados, eram com ele muito bondosos. A
magistrada, imediatamente certificou-se de que estava diante de uma dilemática
situação e determinou que o colocassem em liberdade, pois o caso deveria ser
resolvido pelas esferas da psiquiatria; O preso, porém, vendo-se livre
indignou-se e passou a protestar pela sua volta ao presídio, querendo saber
onde ele receberia, de graça, um prato de comida. E saiu do Fórum, sem
escoltas, apresentando-se novamente ao carcereiro Antônio Domingos, a quem
chamava de "padrinho", pedia a bênção e lhe beijava as mãos.
Quando aconteceu o TERCEIRO FESTIVALE, que foi organizado no
Largo das Cavalhadas, em Minas Novas, os presos, lá da Sapucaieira, que fica
próxima, puderam ouvir as canções classificadas; Entre os presos estava MANÉ
PEPINO, que era o "cão chupando manga", mas um incrível repentista e
violeiro. E este, que já havia conquistado a amizade do delegado, Dr.
Potiguara, solicitou e foi atendido no seu desejo de se apresentar no palco do
festival. E o sucesso foi tamanho que seu "show" quase que
inviabilizou o julgamento final do certame, cujos jurados queriam premiá-lo,
mesmo que não tivesse devidamente inscrito.
BATALZAR, que nunca concordou com a possibilidade de viver em
liberdade, longe da sua aprazível
Sapucaieira, ali ele era muito querido pelos demais companheiros de prisão que
o encarregavam pela limpeza, de cozinhar,
de dar recados e de fazer compras no comércio, missão que ele cumpria a rigor,
ao ponto de, muitas das vezes, o próprio carcereiro deixar com ele as chaves da
cadeia, quando era obrigado a permanecer naqueles locais mais agradáveis que
eram as vendas e os botecos. Diariamente, depois de cumpridas suas “obrigações
diárias”, o referido preso tomava seu banho, vestia um velho paletó escuro,
calçava suas surradas botas e seguia, à tardezinha, para a Igreja do Amparo,
onde assistia religiosamente a Missa do Padre Emiliano, quando também comungava
e depois voltava para a Sapucaieira, onde jantava a sua marmita que ficava lhe
aguardando. Nesse tempo, já não era mais a juíza Dr. Maria Celeste, mas o Dr.
Alvanato Almeida que, sendo também fidelíssimo católico, também não perdia uma
missa do Padre Emiliano, às vezes se assentando no mesmo banco e ao lado do
Batalzar, com quem foi-se afeiçoando.
Numa Festa de Santos Reis, o bondoso vigário estava pregando
sobre os Três Reis Magos, BALTAZAR, GASPAR E MELCHIOR e lembrou aos fiéis que justamente
o Baltazar, embora sua nobreza, era um cidadão negro, assim como ele próprio e também
o delegado Dr. Portiguara, mas que o Menino Jesus, na sua inocência, eterna
bondade e justiça, não fazia distinção de cor e de qualquer outra diferença
entres as pessoas e, assim, foi discorrendo sobre muitas outras coisas bonitas
que maravilharam as ideias do pobre do Batalzar.
Terminada a missa e já saindo
da igreja, o preso abordou o juiz e lhe disse que iria ao fórum para que lhe
fosse nomeado um advogado dativo. O Dr. Alvanato, logo imaginou que,
finalmente, o preso iria requerer sua soltura. Contudo, no dia seguinte, foi
nomeado o Dr. Zezito Coelho que o chamou ao escritório para que pudessem fazer
a petição, quando ficou sabendo que o desejo do preso não era ver-se liberto,
mas, sim, com o nome devidamente corrigido, pois o Padre Emiliano assim o havia
aconselhado. E ambos, advogado e cliente, dirigiram-se ao Cartório de Tião
Barbosa para fazer o correto registro do nome de BATALZAR, que passou a
assinar, com muita dificuldade, o nome de batismo que era BALTAZAR DOMINGO
REIS, nascido em 06 de janeiro de 1916, o qual, se fosse vivo, teria completado
100 ANOS de idade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário