domingo, 3 de janeiro de 2016

UM LONGÍNQUO SOLO DE CLARINETA



No distante ano de 1982 eu me mudei, em Minas Novas, para uma casa que ficava “embaixo de um pequizeiro”, ou seja, a casa em que passei a morar ficava bem ao lado de um antigo, frondoso e pródigo pequizeiro (que não sei se ainda existe), que ali nasceu e cresceu no local, onde tempo depois, surgiu o Campo de Futebol e, ali pertinho, também o Cemitério da cidade, no inicio da Rua Leme do Prado (a qual também não sei se ainda assim se denomina). 

Da Gruta para cima, naquele tempo, eram poucas as residências que existiam nas imediações e era aquela casa, para mim, especialmente um endereço privilegiado, pelo sossego do local, próximo da escola, sem outras casas de lado, e de lá de minha varanda, com garagem, um jardim e uma piscina de lona, saía-se direto para o imenso quintal onde nasceu espontaneamente (e que eu cuidava com muito carinho) uma razoável lavoura de abóboras, melancias e melões, que se beneficiaram do providencial desmonte resultante da terraplanagem e da terra solta que ali se acumulou com a construção do campo de futebol, com o qual minha casa fazia extrema. Havia também, naquele quintal, um mandiocal formado com as manivas que ali se fincaram, naquele solo, como plantação apropriada ao clima e ao terreno, a qual se expandiu espetacularmente, de onde se arrancavam sempre as mais curiosas e deliciosas raízes com as quais Nilda, minha esposa, para alegria de seus alunos, doava à vizinha Escola Costa e Silva, para a confecção generosa da merenda escolar. E o encarregado de desenterrar as raízes de mandioca, curiosamente, era o meu amigo João Camargos que, por coincidência, era também coveiro e o encarregado do dito cemitério vizinho. 

Minha filha Estefânia, então com cinco aninhos, ficava encantada e não raro muito curiosa diante de tanta fartura que ela via brotar de dentro daquela terra dadivosa, que nós irrigávamos, sempre à tardezinha, com uma comprida mangueira de borracha. E ela, sendo muito esperta e observadora, às vezes assistia, de longe, algum enterro que se realizava no interior do cemitério, o qual ficava bem do outro lado da rua, sucedendo que, certo dia em que ela presenciou a inumação de uma pessoa conhecida, ela me apareceu com uma de suas indagações, que me deixou sem saber como explicar sem causar-lhe os traumas que julgava serem possíveis de ocorrer, depois de ter visto, por acaso, o nosso amigo João Camargos no seu serviço de coveiro e logo quis saber se o enterro que ele fazia era para que as pessoas nascessem novamente, como ocorria com as mandiocas, que ele arrancava do chão em nosso quintal.  E, se assim fosse, que ela, quando morresse, gostaria de nascer novamente, não como aqueles vegetais esquisitos e sujos de terra, mas como uma professora tão inteligente, bonita e bondosa como era a sua mãe. E, diante de uma pergunta tão cheia de simbolismo, fantasias e encantamento, para não correr o risco de uma injusta agressão àquela preciosa inocência, eu preferi ficar embasbacado, mudo, com um nó na garganta e escondendo lágrimas, deixando para outra ocasião a possibilidade de uma resposta à altura daquela profunda observação. Depois daquele dia, por precaução, não convidei mais o meu amigo João Camargos para fazer suas colheitas em meu quintal, sem deixar, naturalmente, de ser amigo dele e de o receber sempre em minha casa onde sempre ele foi muito bem acolhido. 

O antigo cemitério, hoje quase que desativado pela saturação de seu espaço, ainda é muito bem cuidado e conservado como um lindo memorial -- com seus muros bem altos e largos que continuam sendo utilizados como imensas passarelas por onde brincam e correm tranquilamente a meninada das redondezas. E, de lá de cima, por ocasião dessas travessuras, invariavelmente as crianças assistiam, sem muito entender, aquelas cerimônias fúnebres. 
A proximidade de nossa casa com aquele local sagrado do “Campo Santo”, apesar de não provocar qualquer superstição, não deixava de suscitar-nos alguns receios, o que me levou a consultar ao Dr. Geraldo, médico e muito amigo nosso, quando ainda o mesmo nem era prefeito, e que imediatamente nos tranquilizou quanto aos cuidados com os quais deveríamos nos prevenir,   afirmando que morar ali era muito mais saudável que ter como vizinhos, por exemplo, um boteco ou um hospital, além do fato de que os mortos, por serem honrosos vizinhos, eram também especiais, pois, além de silenciosos, jamais perturbam com suas visitas incômodas para pedir-nos favores ou para reclamar de barulhos. E nesse particular, com ele nos colocamos de acordo, pois de fato gozávamos daquele imensa liberdade de ter o som de nossa radiola que comodamente ficava bem alto, tocando aqueles encantadores hits da minha predileção, como os Beatles, os Hollings Stones, Appa, Bee Gees. Santtana, Pinck Floyd, Pholhas, Renato e seus Blue Caps, Raul Seixas, Tim Maia e etc, a qualquer hora do dia ou até altas horas da noite, principalmente de sexta para sábado, quando nos reuníamos ali com os amigos, quando não havia ainda a AABB, para o nosso tradicional churrasquinho irrigado com cerveja, o que se repetia aos domingos, pela manhã, enquanto aguardávamos o início das animadas partidas de futebol, que do meu quintal assistíamos gratuitamente, condição, porém que não ficava muito barata, de vez que a maior parte dos atletas, tanto nos intervalos como depois das partidas, juntavam-se a nosso grupo, vindo todos participarem da nossa festinha particular, esbaldando-se, à minha custa, o que passou a se constituir uma agradável tradição que durou através do longo tempo que ali permaneci como morador. 

Aquela minha rua, nessa época, ainda não tinha calçamento e por ali quase nenhum carro transitava, até porque era uma via secundária, sem saída e que terminava no antigo “buracão da lavra velha”, na beira do qual ficava a casinha da minha amiga Domingas – que felizmente ali continua morando - e que cuidava de seus porcos e galinhas que viviam soltos naquele imenso e pedregoso espaço que somente ela dominava, entre moitas de várias mezinhas, arrudas, alecrim, orapronobis, chuchu, urucum, goiabinhas, abacate, carambolas, maracujá e algumas hortaliças que ela sempre nos trazia, de forma generosa, pelo que procurávamos retribuir com todo o carinho que deve ser dispensado às pessoas simples, humildes e solidárias, que de fato merecem, sem o exigir, a nossa mais alta consideração.

A velha Domingas Bernardina, conforme fiquei sabendo recentemente, graças ao Bom Deus continua viva, forte e lúcida, na mesma lida e naquele mesmo endereço, de onde ela afirma que sairá somente depois de morta. Ela, que já deve estar beirando o centenário, é filha de ex-escravos, nasceu e foi criada na "Bandeira Grande", antiga fazenda sede de meu bisavô Juvenato Ferreira, pai de meu avô Durval Coelho, de quem ela sempre me contava seus causos, quando meu pai era criança e seu "malungo" de peraltices. Lembro-me, bem, de sua tia, a saudosa Rita Tramelot, que toda a vida viveu na Santa Casa, onde morreu já idosa, como cozinheira, que afirmava ter sido escrava de meu outro bisavô, o farmacêutico Domingos Mota que faleceu em 1962.

Uma manhã, enquanto estava usando a mangueira para aguar aquela rua onde morávamos, para refrescar, muito mais que para aplacar-lhe a poeira, observei que vinha andando, na minha direção, o meu velho conhecido, o carpinteiro Teotônio Cordeiro, que surgiu da rua principal, arqueado pelo peso de uma esquadria de madeira que trazia às costas, envergado e com os olhos fixos ao chão, onde pisava devagar, quando o vi, deixando cair bruscamente a carga pesada que carregava, jogando-a de lado, e imediatamente se agachando para apanhar, bem perto de mim, um pedregulho molhado em que ele logo identificou ser uma enorme pepita de ouro, saindo dali correndo, eufórico, levando aquele rico e abençoado achado que seria sua riqueza. A notícia do ouro graúdo logo se espelhou e não demorou muito para que uma multidão para aquele local se acorresse na esperança de também encontrar um tesouro. Mas, no máximo, o que acharam foram algumas migalhas de ouro em pó, como era recorrente acontecer quase que em todas as ruas sem calçamento que ficavam em todo o curso das enxurradas, pela ladeira abaixo do cemitério, até às proximidades da Igreja do Rosário, nas confluências das ruas da Boa Vista, esta seguindo em direção do Rio Fanado e a do Pequi, que segue, descendo-se o escorregadio Morro do Caçador, até o paradisíaco ribeirão do Bonsucesso. Aquela dourada ocorrência tem sua explicação, justamente, no fato de que, antigamente, naquela antiga lavra foram muitas as arroubas de ouro que dali foram garimpadas pelos escravos. E, certamente, aquela imensa pepita que foi encontrada por Teotônio, mesmo depois de tanto tempo ali esquecida e encoberta pela terra vermelha, deve ter caído de um alforje de algum minerador ou ficado atolada no barranco, por algum mineiro displicente que ali permaneceu descansando. E o certo é que a velha lavra só não foi reaberta, naquela oportunidade de uma nova corrida, pela multidão que para lá fluíra, em razão da brava resistência de Domingas, mulher que vivia sozinha em sua casa, naquele local ermo, muito temida pela fama de sua temida carabina que ela nunca possuiu e em razão dos feitiços e das rezas bravas de que ela sempre se gabava de ter, mas que eram apenas bravatas e a fama de supostos poderes que ele afirmava possuir. Mas, de qualquer forma, não seria fácil, para ninguém, invadir o seu quintal para procurarem - como ela dizia – o que eles não haviam guardado... “que aqueles aventureiros fossem procurar suas rodilhas onde deixaram quebrar o pote”, pois suas criações e suas plantinhas eram muito mais importantes que as pepitas eventuais que pudessem ser encontradas naquela grota abandonada.  

Muitas pessoas da cidade, mesmo sem a minha cogitação nesse sentido, sugeriram-me reclamar a minha parte naquele achado, pois a ocorrência foi na porta da minha casa e o descoberto se deu pela força da água que saiu de minha mangueira, sendo que até mesmo o próprio sortudo do Teotônio, depois daquele dia, procurou-me com a intenção de me dar a parte que ele entendia ser de meu direito, mas, da parte de minha consciência, não entendi desta forma e dispensei a sua generosidade, na certeza de que jamais poderia receber, como prêmio, um benefício que não era meu e que estava muito bem destinado por Deus à pessoa daquele trabalhador humilde, tão diligente, digno, merecedor e que era responsável por uma numerosa família.

Da minha casa, às vezes, em razão daquela sua localização, permitia-me conhecer fatos corriqueiros, do cotidiano do lugar e até fazer amizades com os ciganos que eventualmente acampavam no terreno baldio que ficava detrás do cemitério, vendo de perto o trabalho e a vida dos empregados dos parques infantis itinerantes, com seus brinquedos improvisados cuja principal finalidade era a de blindar as roletas e as mesas clandestinas dos jogos de azar, além dos artistas dos muitos circos mambembes que se armavam naquele mesmo local. E era da torneira que ficava em meu jardim que todos eles se serviam para atender às necessidades de suas instalações, de suas cozinhas e para o trato de seus animais, que eram muitos, inclusive velhos tigres e leões que eram alimentados com o sacrifício de cachorros recolhidos pelas ruas e jogados em suas jaulas, uma prática vil que certa vez, indignado pude presenciar, fato indigno e abominável que denunciei às autoridades locais, pelo que definitivamente foi abolido somente a partir da rigorosa fiscalização que passou a existir por determinação do prefeito Dr. Geraldo Coelho de Jesus.

Do meu “camarote” privilegiado, além das partidas de futebol, muitos eventos pude assistir como shows musicais, torneios de pipas e todas as brincadeiras infantis que faziam daquele campo desprovido de cercas e de gramado, uma área de lazer a céu aberto, onde era intensa a movimentação de crianças, jovens e adultos na prática desorganizada de peladas, treinos, corridas e todo tipo de atividade aeróbica, saudável e tão necessária ao desenvolvimento físico de todas as pessoas que ficaram impedidas desse benefício a partir da transformação do espaço, hoje murado, com arquibancadas, potentes torres de iluminação, sistema de irrigação, vestiários e equipamentos modernos, mas que não passa de um enorme “elefante branco” que continua sendo aquele subutilizado estádio municipal, cujo custo de manutenção não se justifica pelo mal uso e por consequência da falta de um correto e necessário planejamento administrativo.

Hoje todo o bairro nas imediações do velho cemitério já está urbanizado e densamente habitado. A praça da Gruta, bem arborizada e jardinada, que fica em frente ao antigo Campo Santo, dando acesso ao Estádio Pedro Anísio Maia, hoje é um logradouro central e muito concorrido como local de eventos culturais e de lazer diário para a juventude que estuda na Escola Costa e Silva, hoje ampliada e modernizada. A população da cidade se multiplicou e já não há mais aquele clima bucólico dos tempos em que ali morei. Contudo, daquele tempo restam muitas saudades e sempre me recordo de fatos que ficaram marcados na minha história, que são fatos simples, mas que procuro preservar na minha memória, pinçando dela os momentos que me foram caros e que são inesquecíveis.

Um dos costumes, resultante da fé e da tradição católica que identifica a cultura popular das cidades históricas como é o caso de Minas Novas, continua associado às centenárias irmandades religiosas, muitas delas que ainda existem e em plena atividade, como a do Santíssimo Sacramento dos Homens Brancos e a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Da Irmandade do Santíssimo existe a tradição da coleta dominical, de porta em porta, quando um dos irmãos, vestido com sua opa vermelha colocada como casaca sobre o terno escuro e portando um bastão prateado, com um boquê de rosas multicoloridas que vai ajuntando por onde passa, vai visitando os domicílios, pela manhã do dia de domingo, recolhendo os donativos para a “Cera e o óleo do Santíssimo”. Numa dessas tradicionais visitas, ocorrida naquele longínquo domingo, bateu à minha porta a figura de um desses “irmãos”, justamente quando estávamos reunidos para iniciar o churrasquinho daquele dia. Entre os presentes convidados estavam vários colegas de banco, vindos dos mais distantes lugares e com costumes diferente, estando também presente o gerente da agência do Banco do Brasil, que recentemente havia chegado à cidade, sendo aquele um dos motivos de nossa maior animação, quando todos passaram a se admirar vendo a chegada daquele inusitado personagem, com seus dísticos característicos e bem chamativos, que imediatamente se anunciou com aquela estridente saudação, à porta da casa: “- Esmola para a cera do Santíssimo”... e a seguir, sem pedir licença, foi se achegando pela casa adentro, com toda naturalidade, buscando receber as ofertas que haveria de recolher, que poderia ser desde um ovo de galinha, uma penca de bananas ou uma laranja, até mesmo uma boa quantia em dinheiro ou outro donativo que, a critério do morador, este a considerasse valioso e adequado para as necessidades da irmandade e da igreja. E no passar da “sacola de seda vermelha” para recolher os “óbolos” que cada presente poderia ofertar, aquele irmão teve a grata surpresa ao perceber um considerável volume de dinheiro, como nunca antes ocorrera, pois todos entenderam que deveria imitar o gesto do anfitrião (no caso eu) que, sempre naquele dia, aproveitava para cumprir aquele ritual que aprendera a seguir desde o tempo de meu pai, que por sua vez, herdou a opa de meus avós, doando uma quantia que, por acaso naquele dia especial seria mais generosa. E a satisfação foi tão grande que, além do tradicional agradecimento “que o Santíssimo Sacramento lhes cubra de bênçãos”, o irmão de opa sacou uma clarineta de dentro de um estojo negro que trazia dentro do bornal que trazia a tiracolo, montou-a e, na mesma tonalidade da música que naquele momento estava tocando no aparelho de som, como se ele tivesse ensaiado para executar aquela linda melodia, para surpresa dos presentes ele passou a tocar o seu instrumento, de forma tão afinada e maravilhosa, que imediatamente abaixamos todo o volume do som mecânico e deixamos que ele sozinho continuasse com aquele show digno dos melhores mestres, como alias, todos que não o conheciam passaram a admirar, naquela sua arte que para mim já era velha conhecida.

E foi assim que, a partir daquele dia, a música que se segue continua na minha memória, sempre associada aquele evento, no encontro singelo com aqueles amigos rotineiros e de colegas bancários que muito contribuíram para o desenvolvimento de nossa cidade, mas, principalmente, para evocar a figura de um músico excepcional, um cidadão muito especial de nossa cidade, na pessoa do saudoso Gentil Fernandes que é um ícone imorredouro de nossas tradições musicais.


Para ouvir a música "Petite Fleur", que Gentil Fernandes executava com maestria e perfeição, queira acessar o link abaixo:



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