No distante ano
de 1982 eu me mudei, em Minas Novas, para uma casa que ficava “embaixo de um
pequizeiro”, ou seja, a casa em que passei a morar ficava bem ao lado de um
antigo, frondoso e pródigo pequizeiro (que não sei se ainda existe), que ali
nasceu e cresceu no local, onde tempo depois, surgiu o Campo de Futebol e, ali
pertinho, também o Cemitério da cidade, no inicio da Rua Leme do Prado (a qual
também não sei se ainda assim se denomina).
Da Gruta para
cima, naquele tempo, eram poucas as residências que existiam nas imediações e
era aquela casa, para mim, especialmente um endereço privilegiado, pelo sossego
do local, próximo da escola, sem outras casas de lado, e de lá de minha
varanda, com garagem, um jardim e uma piscina de lona, saía-se direto para o
imenso quintal onde nasceu espontaneamente (e que eu cuidava com muito carinho)
uma razoável lavoura de abóboras, melancias e melões, que se beneficiaram do
providencial desmonte resultante da terraplanagem e da terra solta que ali se
acumulou com a construção do campo de futebol, com o qual minha casa fazia
extrema. Havia também, naquele quintal, um mandiocal formado com as manivas que
ali se fincaram, naquele solo, como plantação apropriada ao clima e ao terreno,
a qual se expandiu espetacularmente, de onde se arrancavam sempre as mais
curiosas e deliciosas raízes com as quais Nilda, minha esposa, para alegria de
seus alunos, doava à vizinha Escola Costa e Silva, para a confecção generosa da
merenda escolar. E o encarregado de desenterrar as raízes de mandioca,
curiosamente, era o meu amigo João Camargos que, por coincidência, era também
coveiro e o encarregado do dito cemitério vizinho.
Minha filha
Estefânia, então com cinco aninhos, ficava encantada e não raro muito curiosa
diante de tanta fartura que ela via brotar de dentro daquela terra dadivosa,
que nós irrigávamos, sempre à tardezinha, com uma comprida mangueira de
borracha. E ela, sendo muito esperta e observadora, às vezes assistia, de
longe, algum enterro que se realizava no interior do cemitério, o qual ficava
bem do outro lado da rua, sucedendo que, certo dia em que ela presenciou a inumação
de uma pessoa conhecida, ela me apareceu com uma de suas indagações, que me
deixou sem saber como explicar sem causar-lhe os traumas que julgava serem
possíveis de ocorrer, depois de ter visto, por acaso, o nosso amigo João
Camargos no seu serviço de coveiro e logo quis saber se o enterro que ele fazia
era para que as pessoas nascessem novamente, como ocorria com as mandiocas, que
ele arrancava do chão em nosso quintal. E, se assim fosse, que ela,
quando morresse, gostaria de nascer novamente, não como aqueles vegetais
esquisitos e sujos de terra, mas como uma professora tão inteligente, bonita e
bondosa como era a sua mãe. E, diante de uma pergunta tão cheia de simbolismo,
fantasias e encantamento, para não correr o risco de uma injusta agressão àquela
preciosa inocência, eu preferi ficar embasbacado, mudo, com um nó na garganta e
escondendo lágrimas, deixando para outra ocasião a possibilidade de uma
resposta à altura daquela profunda observação. Depois daquele dia, por
precaução, não convidei mais o meu amigo João Camargos para fazer suas
colheitas em meu quintal, sem deixar, naturalmente, de ser amigo dele e de o
receber sempre em minha casa onde sempre ele foi muito bem acolhido.
O antigo
cemitério, hoje quase que desativado pela saturação de seu espaço, ainda é
muito bem cuidado e conservado como um lindo memorial -- com seus muros bem
altos e largos que continuam sendo utilizados como imensas passarelas por onde
brincam e correm tranquilamente a meninada das redondezas. E, de lá de cima, por
ocasião dessas travessuras, invariavelmente as crianças assistiam, sem muito
entender, aquelas cerimônias fúnebres.
A proximidade de
nossa casa com aquele local sagrado do “Campo Santo”, apesar de não provocar
qualquer superstição, não deixava de suscitar-nos alguns receios, o que me
levou a consultar ao Dr. Geraldo, médico e muito amigo nosso, quando ainda o
mesmo nem era prefeito, e que imediatamente nos tranquilizou quanto aos
cuidados com os quais deveríamos nos prevenir, afirmando que morar ali era muito mais
saudável que ter como vizinhos, por exemplo, um boteco ou um hospital, além do
fato de que os mortos, por serem honrosos vizinhos, eram também especiais,
pois, além de silenciosos, jamais perturbam com suas visitas incômodas para
pedir-nos favores ou para reclamar de barulhos. E nesse particular, com ele nos
colocamos de acordo, pois de fato gozávamos daquele imensa liberdade de ter o
som de nossa radiola que comodamente ficava bem alto, tocando aqueles
encantadores hits da minha predileção, como os Beatles, os Hollings Stones,
Appa, Bee Gees. Santtana, Pinck Floyd, Pholhas, Renato e seus Blue Caps, Raul
Seixas, Tim Maia e etc, a qualquer hora do dia ou até altas horas da noite,
principalmente de sexta para sábado, quando nos reuníamos ali com os amigos,
quando não havia ainda a AABB, para o nosso tradicional churrasquinho irrigado
com cerveja, o que se repetia aos domingos, pela manhã, enquanto aguardávamos o
início das animadas partidas de futebol, que do meu quintal assistíamos
gratuitamente, condição, porém que não ficava muito barata, de vez que a maior
parte dos atletas, tanto nos intervalos como depois das partidas, juntavam-se a
nosso grupo, vindo todos participarem da nossa festinha particular,
esbaldando-se, à minha custa, o que passou a se constituir uma agradável
tradição que durou através do longo tempo que ali permaneci como morador.
Aquela minha
rua, nessa época, ainda não tinha calçamento e por ali quase nenhum carro
transitava, até porque era uma via secundária, sem saída e que terminava no
antigo “buracão da lavra velha”, na beira do qual ficava a casinha da minha
amiga Domingas – que felizmente ali continua morando - e que cuidava de seus
porcos e galinhas que viviam soltos naquele imenso e pedregoso espaço que
somente ela dominava, entre moitas de várias mezinhas, arrudas, alecrim,
orapronobis, chuchu, urucum, goiabinhas, abacate, carambolas, maracujá e
algumas hortaliças que ela sempre nos trazia, de forma generosa, pelo que
procurávamos retribuir com todo o carinho que deve ser dispensado às pessoas
simples, humildes e solidárias, que de fato merecem, sem o exigir, a nossa mais
alta consideração.
A velha Domingas
Bernardina, conforme fiquei sabendo recentemente, graças ao Bom Deus continua
viva, forte e lúcida, na mesma lida e naquele mesmo endereço, de onde ela
afirma que sairá somente depois de morta. Ela, que já deve estar beirando o
centenário, é filha de ex-escravos, nasceu e foi criada na "Bandeira
Grande", antiga fazenda sede de meu bisavô Juvenato Ferreira, pai de meu
avô Durval Coelho, de quem ela sempre me contava seus causos, quando meu pai
era criança e seu "malungo" de peraltices. Lembro-me, bem, de sua
tia, a saudosa Rita Tramelot, que toda a vida viveu na Santa Casa, onde morreu já
idosa, como cozinheira, que afirmava ter sido escrava de meu outro bisavô, o
farmacêutico Domingos Mota que faleceu em 1962.
Uma manhã,
enquanto estava usando a mangueira para aguar aquela rua onde morávamos, para
refrescar, muito mais que para aplacar-lhe a poeira, observei que vinha
andando, na minha direção, o meu velho conhecido, o carpinteiro Teotônio
Cordeiro, que surgiu da rua principal, arqueado pelo peso de uma esquadria de
madeira que trazia às costas, envergado e com os olhos fixos ao chão, onde
pisava devagar, quando o vi, deixando cair bruscamente a carga pesada que
carregava, jogando-a de lado, e imediatamente se agachando para apanhar, bem
perto de mim, um pedregulho molhado em que ele logo identificou ser uma enorme
pepita de ouro, saindo dali correndo, eufórico, levando aquele rico e abençoado
achado que seria sua riqueza. A notícia do ouro graúdo logo se espelhou e não
demorou muito para que uma multidão para aquele local se acorresse na esperança
de também encontrar um tesouro. Mas, no máximo, o que acharam foram algumas
migalhas de ouro em pó, como era recorrente acontecer quase que em todas as
ruas sem calçamento que ficavam em todo o curso das enxurradas, pela ladeira
abaixo do cemitério, até às proximidades da Igreja do Rosário, nas confluências
das ruas da Boa Vista, esta seguindo em direção do Rio Fanado e a do Pequi, que
segue, descendo-se o escorregadio Morro do Caçador, até o paradisíaco ribeirão
do Bonsucesso. Aquela dourada ocorrência tem sua explicação, justamente, no
fato de que, antigamente, naquela antiga lavra foram muitas as arroubas de ouro
que dali foram garimpadas pelos escravos. E, certamente, aquela imensa pepita
que foi encontrada por Teotônio, mesmo depois de tanto tempo ali esquecida e
encoberta pela terra vermelha, deve ter caído de um alforje de algum minerador
ou ficado atolada no barranco, por algum mineiro displicente que ali permaneceu
descansando. E o certo é que a velha lavra só não foi reaberta, naquela
oportunidade de uma nova corrida, pela multidão que para lá fluíra, em razão da
brava resistência de Domingas, mulher que vivia sozinha em sua casa, naquele
local ermo, muito temida pela fama de sua temida carabina que ela nunca possuiu
e em razão dos feitiços e das rezas bravas de que ela sempre se gabava de ter,
mas que eram apenas bravatas e a fama de supostos poderes que ele afirmava
possuir. Mas, de qualquer forma, não seria fácil, para ninguém, invadir o seu
quintal para procurarem - como ela dizia – o que eles não haviam
guardado... “que aqueles aventureiros fossem procurar suas rodilhas
onde deixaram quebrar o pote”, pois suas criações e suas
plantinhas eram muito mais importantes que as pepitas eventuais que pudessem
ser encontradas naquela grota abandonada.
Muitas pessoas
da cidade, mesmo sem a minha cogitação nesse sentido, sugeriram-me reclamar a
minha parte naquele achado, pois a ocorrência foi na porta da minha casa e o
descoberto se deu pela força da água que saiu de minha mangueira, sendo que até
mesmo o próprio sortudo do Teotônio, depois daquele dia, procurou-me com a
intenção de me dar a parte que ele entendia ser de meu direito, mas, da parte
de minha consciência, não entendi desta forma e dispensei a sua generosidade,
na certeza de que jamais poderia receber, como prêmio, um benefício que não era
meu e que estava muito bem destinado por Deus à pessoa daquele trabalhador
humilde, tão diligente, digno, merecedor e que era responsável por uma numerosa
família.
Da minha casa,
às vezes, em razão daquela sua localização, permitia-me conhecer fatos
corriqueiros, do cotidiano do lugar e até fazer amizades com os ciganos que
eventualmente acampavam no terreno baldio que ficava detrás do cemitério, vendo
de perto o trabalho e a vida dos empregados dos parques infantis itinerantes,
com seus brinquedos improvisados cuja principal finalidade era a de blindar as
roletas e as mesas clandestinas dos jogos de azar, além dos artistas dos muitos
circos mambembes que se armavam naquele mesmo local. E era da torneira que
ficava em meu jardim que todos eles se serviam para atender às necessidades de
suas instalações, de suas cozinhas e para o trato de seus animais, que eram
muitos, inclusive velhos tigres e leões que eram alimentados com o sacrifício
de cachorros recolhidos pelas ruas e jogados em suas jaulas, uma prática vil
que certa vez, indignado pude presenciar, fato indigno e abominável que
denunciei às autoridades locais, pelo que definitivamente foi abolido somente a
partir da rigorosa fiscalização que passou a existir por determinação do
prefeito Dr. Geraldo Coelho de Jesus.
Do meu
“camarote” privilegiado, além das partidas de futebol, muitos eventos pude
assistir como shows musicais, torneios de pipas e todas as brincadeiras
infantis que faziam daquele campo desprovido de cercas e de gramado, uma área
de lazer a céu aberto, onde era intensa a movimentação de crianças, jovens e
adultos na prática desorganizada de peladas, treinos, corridas e todo tipo de
atividade aeróbica, saudável e tão necessária ao desenvolvimento físico de
todas as pessoas que ficaram impedidas desse benefício a partir da
transformação do espaço, hoje murado, com arquibancadas, potentes torres de
iluminação, sistema de irrigação, vestiários e equipamentos modernos, mas que
não passa de um enorme “elefante branco” que continua sendo aquele subutilizado
estádio municipal, cujo custo de manutenção não se justifica pelo mal uso e por
consequência da falta de um correto e necessário planejamento administrativo.
Hoje todo o
bairro nas imediações do velho cemitério já está urbanizado e densamente
habitado. A praça da Gruta, bem arborizada e jardinada, que fica em frente ao
antigo Campo Santo, dando acesso ao Estádio Pedro Anísio Maia, hoje é um
logradouro central e muito concorrido como local de eventos culturais e de
lazer diário para a juventude que estuda na Escola Costa e Silva, hoje ampliada
e modernizada. A população da cidade se multiplicou e já não há mais aquele clima
bucólico dos tempos em que ali morei. Contudo, daquele tempo restam muitas
saudades e sempre me recordo de fatos que ficaram marcados na minha história,
que são fatos simples, mas que procuro preservar na minha memória, pinçando
dela os momentos que me foram caros e que são inesquecíveis.
Um dos costumes,
resultante da fé e da tradição católica que identifica a cultura popular das
cidades históricas como é o caso de Minas Novas, continua associado às
centenárias irmandades religiosas, muitas delas que ainda existem e em plena
atividade, como a do Santíssimo Sacramento dos Homens Brancos e a de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Da Irmandade do Santíssimo existe a
tradição da coleta dominical, de porta em porta, quando um dos irmãos, vestido com
sua opa vermelha colocada como casaca sobre o terno escuro e portando um bastão
prateado, com um boquê de rosas multicoloridas que vai ajuntando por onde
passa, vai visitando os domicílios, pela manhã do dia de domingo, recolhendo os
donativos para a “Cera e o óleo do Santíssimo”. Numa dessas
tradicionais visitas, ocorrida naquele longínquo domingo, bateu à minha porta a
figura de um desses “irmãos”, justamente quando estávamos reunidos para iniciar
o churrasquinho daquele dia. Entre os presentes convidados estavam vários
colegas de banco, vindos dos mais distantes lugares e com costumes diferente,
estando também presente o gerente da agência do Banco do Brasil, que
recentemente havia chegado à cidade, sendo aquele um dos motivos de nossa maior
animação, quando todos passaram a se admirar vendo a chegada daquele inusitado
personagem, com seus dísticos característicos e bem chamativos, que
imediatamente se anunciou com aquela estridente saudação, à porta da
casa: “- Esmola para a cera do Santíssimo”... e a seguir,
sem pedir licença, foi se achegando pela casa adentro, com toda naturalidade,
buscando receber as ofertas que haveria de recolher, que poderia ser desde um
ovo de galinha, uma penca de bananas ou uma laranja, até mesmo uma boa quantia
em dinheiro ou outro donativo que, a critério do morador, este a considerasse
valioso e adequado para as necessidades da irmandade e da igreja. E no passar
da “sacola de seda vermelha” para recolher os “óbolos” que cada presente
poderia ofertar, aquele irmão teve a grata surpresa ao perceber um considerável
volume de dinheiro, como nunca antes ocorrera, pois todos entenderam que
deveria imitar o gesto do anfitrião (no caso eu) que, sempre naquele dia,
aproveitava para cumprir aquele ritual que aprendera a seguir desde o tempo de
meu pai, que por sua vez, herdou a opa de meus avós, doando uma quantia que,
por acaso naquele dia especial seria mais generosa. E a satisfação foi tão
grande que, além do tradicional agradecimento “que o Santíssimo
Sacramento lhes cubra de bênçãos”, o irmão de opa sacou uma
clarineta de dentro de um estojo negro que trazia dentro do bornal que trazia a
tiracolo, montou-a e, na mesma tonalidade da música que naquele momento estava
tocando no aparelho de som, como se ele tivesse ensaiado para executar aquela
linda melodia, para surpresa dos presentes ele passou a tocar o seu
instrumento, de forma tão afinada e maravilhosa, que imediatamente abaixamos
todo o volume do som mecânico e deixamos que ele sozinho continuasse com aquele
show digno dos melhores mestres, como alias, todos que não o conheciam passaram
a admirar, naquela sua arte que para mim já era velha conhecida.
E foi assim que,
a partir daquele dia, a música que se segue continua na minha memória, sempre
associada aquele evento, no encontro singelo com aqueles amigos rotineiros e de
colegas bancários que muito contribuíram para o desenvolvimento de nossa cidade,
mas, principalmente, para evocar a figura de um músico excepcional, um cidadão
muito especial de nossa cidade, na pessoa do saudoso Gentil Fernandes que é um
ícone imorredouro de nossas tradições musicais.
Para ouvir a música "Petite Fleur", que Gentil Fernandes executava com maestria e perfeição, queira acessar o link abaixo:
Nenhum comentário:
Postar um comentário