INTOLERÂNCIA RELIGIOSA EM TEMPOS DE CRISE
No final da década de 1950 houve um
longo período de estiagem, quando a seca devastou todas as plantações e
pastagens que havia no Baixo-Jequitinhonha, ocasionando uma enorme crise de
falta de alimentos para a população que morava nas diversas cidades ribeirinhas,
obrigando as pessoas a buscarem a sobrevivência nas regiões próximas ao Rio
Araçuaí e seus pequenos afluentes onde a mineração do ouro voltou a ser a
principal atividade econômica, embora de forma precária e arriscada em razão da
escassez hídrica, da rápida concentração demográfica e do surgimento de
problemas relacionados à falta de suporte urbano, à falta de moradias adequadas
e da insalubridade decorrente da crítica inexistência de um necessário combate
às doenças endêmicas e às febres diferentes que surgiam a cada dia. Contudo,
mesmo com a decadente situação e a grande carência de recursos materiais e
meios de vida o grande contingente que se alojou no antigo distrito de Chapada
encontrou melhores condições para seguirem o difícil curso de suas existências.
Foi nesse período que surgiram várias povoações, ao longo dos córregos
tributários do Araçuaí, do Setúbal e do Capivari, das quais muitas delas se transformaram
nos atuais distritos que hoje formam o município de Chapada do Norte, sendo
que, já naquela época, houve uma razoável demanda de famílias inteiras de
retirantes que aqui chegavam em busca de oportunidades, na esperança de
encontrarem ouro e pedras preciosas. Nesse sentido, todas as antigas lavras que
ficaram adormecidas por mais de 100 anos, foram novamente reabertas e algumas
delas experimentaram novas safras que animaram as levas de garimpeiros e
aventureiros. Em decorrência desse fenômeno, houve até tentativas de se
incrementar a atividade minerária com a adoção de novos métodos e mecanismos de
exploração das lavras, como foram as ocorrências nos Córregos da Misericórdia,
de Batatais, de Maluaí, do Paiol e Bateia Quebrada onde, pouco depois, vários
equipamentos foram abandonados depois da constatação da definitiva exaustão dos
veios auríferos que ali existiram antigamente. Mesmo assim houve um razoável
incremento no aparecimento de ouro em pó e algumas colheitas esporádicas de
pedras coradas e, principalmente, boa quantidade de cristais e ametistas, de
vez que estes minerais anteriormente não eram cobiçados pelos aventureiros, ficando
preservados na natureza, quando a ganância era voltada exclusivamente ao ouro e
ao diamante. Desses eventos existem algumas pedras, remanescentes da antiga “Feira
de Amostras” que havia no local onde hoje é a Rodoviária de Belo Horizonte, que
estão expostas no atual Museu de Mineralogia, sendo que muitas delas que, se
não representam grandes valores de mercado, pelo menos teriam importante valor
histórico e deveriam ser reintegradas ao patrimônio do município de Chapada do
Norte, de onde nunca deveriam ter sido retiradas.
Desse tempo se sabe que, além da
questão migratória que resultou na chegada daquelas ditas famílias, com elas
vieram novos usos, consumos e costumes que foram agregados ao cotidiano dos
novos endereços. Até então, com referência à religiosidade popular, a população
nesse período era majoritariamente católica e não havia nem mesmo notícias
sobre a existência de outras denominações cristãs, embora já consolidada a tradicional
e considerável influência do sincretismo religioso instalado pelo elemento
escravo de origem africana, com raríssimos casos relacionados a rituais de
mandingas e feitiçarias que resultassem em maiores consequências, a exemplo do
que ocorria na região mais próxima ao território baiano, mas aqui com a
recorrência de costumes que continuam normalmente tolerados pela sociedade
comunitária, muitos dos quais ainda são adotados na atualidade como benseções, rituais de passagem e de curas, despachos simples de raízes, frutas e mezinhas, além de rezas milagrosas que se aderiram e fazem
parte da cultura e da tradição que muito enriquecem o folclore regional. Contudo,
são conhecidos alguns casos de tentativa da introdução de outras religiões ou
seitas, contra as quais houve grande resistência por parte dos moradores que
não aceitavam (e em alguns casos ainda não aceitam), de forma alguma, a adoção de outros credos e o repúdio veemente da chegada e da convivência com os crentes evangélicos. E muitos foram os incidentes em que
se envolvia a intolerância religiosa. Foi assim que certa vez, depois de um
tumulto que ocorreu no mercado público do distrito de Chapada, foi recolhido à
Cadeia Pública de Minas Novas a figura de um indivíduo considerado perigoso e
que fora preso naquela feira pelo sub-delegado local que o flagrou no delito de
desacato à autoridade do juiz de paz, quando este o interpelou no exato momento
do crime, de estar fazendo pregações públicas, com leitura de trechos bíblicos,
confrontando-se à atividade do padre José Sacramento, vigário da Paróquia de
Santa Cruz e, segundo o que foi relatado no boletim de ocorrência, lançava
ofensas à Igreja e aos santos católicos, atitude que foi considerada como
atentatória aos bons costumes. Mesmo recolhido à cadeia da comarca, o preso
continuou fazendo suas orações e normalmente lendo seu seboso livro para os
demais presos, de forma mansa, pacífica, sem demonstrar arrependimento e de
certa forma demonstrando seu particular contentamento de ali estar naquele
lugar que era tão detestado pelos demais criminosos ali recolhidos. Depois de
algum tempo ali recolhido em um cubículo, foi chamado ao fórum para ser julgado
o seu caso, quando o juiz da comarca não achou qualquer razão para considerá-lo
culpado pelos fatos relatados na acusação, vendo nele uma pessoa de fé simples
e que nenhum risco oferecia à sociedade, determinando que imediatamente o
colocassem em liberdade. Tratava-se aquele caso, na realidade, de um desses
andarilhos afetados pelo rigor da miséria e da fome, o qual certamente, em
tempos mais favoráveis de sua vida passada no local de sua origem tivera
contato com outras culturas, pois além de crente praticante, também sabia ler,
escrever e tocar vários instrumentos musicais como clarinete, violão e
acordeom, demonstrando, porém, lapsos mentais que o permitiam apenas informar o
nome de seu registro e de que era natural e procedente da cidade baiana de
Belmonte, localizada na foz do Rio Jequitinhonha, para onde a autoridade
judicial mandou que se expedisse carta rogatória de maiores informações, cuja
resposta foi dada positiva algum tempo depois, quando o referido mendigo já não
mais estava na cidade, trazendo como inexistentes qualquer fato desabonador de
sua ficha pregressa e dando-o como um cidadão pacato e conhecido antigo
trabalhador daquela municipalidade do litoral, o qual teria sido acometido por
problemas psíquicos e que, de fato, estava evadido de seu domicílio onde não deixou
pistas de seu destino.
Tenho dessa figura humana alguma
lembrança, que guardo-a desde o meu tempo de menino quando eu constantemente frequentava
a casa de meu bisavô Domingos Mota que um dia o acolheu na Santa Casa de
Misericórdia, onde era o provedor, de vez que o tal indigente estava com a saúde
muito debilitada e carente de cuidados e abrigo, não podendo ficar como estava,
ao relento, depois de liberado da cadeia, perambulando pelas ruas da cidade. Naquele
período eu frequentemente o via, quando ia brincar com meus amigos da rua de
baixo no imenso pomar que era o quintal da Santa Casa de Minas Novas, onde,
entre outros internos e indigentes, muito me admirava de ver aquele homem
franzino, raquítico, mas de semblante manso e ares de inteligente, ali
rabiscando papeis, fazendo curiosas dobraduras, enfeites e colares, recitando interessantes
casos e versos da literatura de cordel, como se estivesse numa daquelas
tradicionais feiras nordestinas, lendo tudo que encontrava à sua frente,
fazendo-o com sua voz empostada e bem articulada, dando a entender que se
tratava de alguém alfabetizado e detentor de algum conhecimento além do saber
de uma pessoa de mediana cultura. Segundo todos notavam, com o passar dos dias
de recolhimento, foi ele demonstrando boa recuperação de seu juízo e foi
recobrando seu vigor físico que o permitia eventualmente sair à rua e ter
contatos com os moradores que passaram a se mostrar curiosos pela sua
gentileza, suas boas maneiras no relacionamento geral e pela demonstração
espontânea de conhecimentos artísticos e de costumes que em muito superavam o
entendimento médio da população, inclusive com a admirável execução artística
daqueles instrumentos musicais que lhe eram apresentados e com os quais
demonstrava sua habilidade. E não tendo outras opções para exercer sua
religiosidade, passou a frequentar a igreja onde o padre notou nele uma pessoa
que merecia ser ajudada, tomando logo a iniciativa de encaminhá-lo ao bispo de
Araçuaí para, de lá, ser encaminhado à sua origem, tão logo estivesse
totalmente recuperado e em condições de viajar. Há um fato, porém, que muito
marcou minha curiosidade de menino que desde aquele tempo já gostava muito de estar
informado sobre assuntos como aquele, pois também em casa ficava sabendo de
informações sobre fatos que transitavam no meio forense, onde meus pais atuavam
como serventuários da justiça. O caso do João Sampaio ficou na minha memória,
em razão de vários episódios a ele relacionados, revelando que ele sabia de
muita coisa que não demonstrava saber e delas aos poucos se lembrava, na medida
em que era estimulado pelas circunstâncias e em razão do bom atendimento às suas
necessidades de acolhimento, alimentação e zelo. Certa vez, depois de sofrer violenta
crise epilética, ele pediu a meu avô que lhe aplicasse uma injeção que, para
surpresa do farmacêutico, ele se lembrava até do princípio ativo daquele medicamento
por ele conhecido, por ter sido de seu uso rotineiro em antiga indicação do
médico da sua cidade de origem, cujo nome ele informou com todos os detalhes e
que, de fato, era um dos poucos remédios que naquele tempo era adotado naquele
caso específico de tratamento e do qual havia algumas ampolas disponíveis na
farmácia da Santa Casa, mas que era de uso exclusivo e controlado por receita
de profissional médico que, infelizmente, naquele tempo não havia nos quadros
funcionais daquele nosocômio, o qual pudesse fazer a devida prescrição e liberação
de uso, falta que foi imediatamente suprida por provisão expedida pelo juiz de
direito que julgou como necessário e imediato aquele tratamento que logo se
revelou de forma positiva e eficiente. Diante do resultado daquela injeção, o
mesmo tratamento foi estendido a outra paciente que há muito sofria do mesmo
incômodo e que logo teve seu problema contornado, de vez que, a partir do uso
do mesmo remédio nunca mais ela sofreu com os recorrentes ataques epiléticos. De outra oportunidade, pouco antes do dito João
Sampaio desaparecer da Santa Casa, sem deixar vestígios de sua presença e
frustrando o projeto do bondoso padre de providenciar sua ida para Belmonte, a velha
cozinheira, de nome Rita Tramelot, que era também um misto de enfermeira e
auxiliar administrativa naquela antiga casa de saúde, levou ao conhecimento do meu
avô Domingos que o crente estaria de chamegos amorosos com a dita interna, que
era acometida da mesma doença em tratamento, conhecida como Zezinha da Conferência,
fato que, segundo aquele administrador que era muito experiente e atento a tudo
que se passava naquele local, confessou já estar desconfiado e então orientou a
todos que nada fizessem para impedi-los naquele suposto relacionamento, cujos
efeitos ele estava observando como benéficos a ambos. E não foi preciso muito
tempo para se confirmar a certeza desses benefícios, pois o casal de namorados,
vendo-se fortalecidos e animados, resolveu ludibriar a vigilância da casa e se
escafedeu para um novo destino ignorado, o que foi descoberto somente depois de
muitos anos, quando os dois já estavam casados e bem radicados em uma pequena
propriedade rural em que foram acolhidos no lugar, no município de Chapada do
Norte, hoje denominada de Sampaio, possivelmente em razão da Escolinha do
Sampaio, onde o crente João Sampaio (antigo João Caio) muito antes chegara como
andarilho desconhecido e para onde, depois da sua indigitada passagem pela feira
de Chapada onde foi preso e de seu envio para a cadeia de Minas Novas e
tratamento na Santa Casa, voltou imediatamente para dar início a uma nova vida,
passando a trabalhar como pequeno lavrador e dar suas aulas de alfabetização de
adultos e poder fazer suas pregações dominicais, vindo a falecer depois de
algum tempo viver em companhia de sua legítima esposa Dona Maria José do
Sampaio. Segundo o Vereador Vicentinho,
que o conheceu e que dele foi vizinho na Comunidade de Vila de São Silvestre,
que fica no município de Berilo, à beira do Rio Araçuaí, depois de receber as
águas do Capivari, o João Caio, que mudou de nome para João Sampaio, mesmo
diante das discriminações e dificuldades de ser aceito pelos moradores católicos
daquele lugar, nunca renegou sua condição de crente, não tendo aceitado a ajuda
do vigário de Minas Novas e preferiu se estabelecer de forma quase anônima, naquele
local onde não fosse localizado pelos familiares de Belmonte.
Segundo o que me informou o “seu” Vicentinho,
de quem me tornei amigo quanto atuei na região, em minhas atividades como
coordenador do Fundec (um programa do Banco do Brasil destinado às pequenas
comunidades rurais) ele que além de vereador por Berilo era, também, líder católico
muito bem relacionado, disse que naquela época, certa vez acompanhou o antigo
vigário daquele município, o belga Padre Willy, culto e muito intransigente em
questões de fé, logo que chegou à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da
Água Limpa, para uma visita ao único crente que existia em toda região,
exatamente o tal João Sampaio que já estava bastante decadente. Que nesta
visita sacerdotal àquela localidade, ele presenciou quando foi feita uma
especial exortação do padre ao João Sampaio para que ele recebesse e adotasse
os sacramentos da igreja católica, pelo que ele agradeceu elegante e educadamente
e fez ver ao bondoso vigário que continuaria fiel à sua opção evangélica e, em
razão de seus argumentos e ponderações, teve o reconhecimento e a admiração
daquele piedoso e abnegado padre que atuou por décadas na região e o
considerava, embora confessadamente adversário, como um sábio e verdadeiro
cristão que não merecia ser estigmatizado em razão de sua crença e que deveria
praticar livremente sua fé, inclusive fazendo seu trabalho missionário em
tempos que não se admitia esse serviço religioso, principalmente no lado
esquerdo do Rio, pertencente ao município de Chapada do Norte onde prevalecia o
rigor da orientação sacerdotal do Padre Sacramento.
O saudoso padre Willy, não
especificamente em razão desse caso, mas por força de sua conhecida liberalidade chegou a
ser punido pelo bispo da diocese de Araçuaí, autoridade eclesiástica a quem se
reportava, chegando a ter suspensas suas ordens sacerdotais que foram
recuperadas somente muito tempo depois, quando já estava idoso e morando no seu
preferido e particular refúgio que era o Patronato por ele fundado e
administrado, até por ocasião de sua morte, no início deste século XXI, no
Distrito de Lelivéldia.
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