sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

SAUDADES DE ZÉ PRETO PARANÁ!


PARANÁ
E O FETICHE DOS SAPATOS FEMININOS

A ex-primeira-dama, mulher muito vaidosa em público, mas no particular doméstico exageradamente econômica (ou, como se diria aos íntimos: munheca de samambaia), ordenou a seu valido, de apelido Zé Melado, fazer uma arrumação em regra no casarão onde moravam, iniciando pelos trastes e cacarecos do porão e quintal, passando-se pela cozinha, despensa e resto da casa, excluídos dessa providência, naturalmente, a sua própria pessoa e a do seu distinto esposo, recomendação que se fazia necessária de vez que o empregado sempre tomava ao pé da letra as ordens recebidas por parte da patroa.
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E foram amontoando lá no terreiro as tralhas, bruacas, esteiras, empanadas, pelegos, trapos de cortinas, cobertores desfiados, roupas velhas, vasilhas enferrujadas, palanganas e urinóis furados, cadeiras quebradas, bacias remendadas e quase tudo o demais que havia dentro daquele museu de inutilidades.

O pobre rapaz, muito do bem mandado, estava visivelmente assustado e curioso, ao mesmo tempo, diante daquela tamanha trabalheira e indagando, a si próprio, qual o fim que daria àquele considerável entulho, antes que a dona resolvesse que tudo voltasse a ocupar novamente as gavetas, os armários, a despensa e os quartos que, na verdade, ao serem desocupados, fazia parte do projeto dela de transformá-los em quartos para hóspedes, com a finalidade de engordar, ainda mais, as diversas cadernetas de poupança que mantinha na Minascaixa, cuja agência ficava logo ali ao lado.

E no propósito de arranjar mais um cantinho para mais um rendoso catre, foi despejando quinquilharias, antes guardadas como tesouro, naquele monturo que se foi formando entre a cobertura do forno e o cercado do galinheiro, até que chegou a vez dos babilaques, revistas forenses, súmulas desatualizadas e velhos compêndios de latim há muito entregues à sanha das traças, bem como uma estante enorme, tomada de vários pares de sapatos femininos de todos os modelos e cores.

Deparando-se diante destes antigos mimos, a velha dama quedou-se e se pôs a recordar dos tempos áureos em que aqueles lindos objetos de consumo, que eram seus presentes prediletos, constituíam-se em moeda de troca que impunha a todos que lhe solicitavam favores, no deslinde de seus interesses junto ao fisco municipal, no rateio de sinecuras e na distribuição do poder administrativo do marido frente à municipalidade.

Tempo bom, aquele pretérito recente, de vacas gordas, roças fartas, sótão abundante e burras cheias!

Tudo porém era diferente e a safra de votos já não se fazia tão fáceis. não estando muito favorável ao curral eleitoral da casa grande, de quem eram quarteirões, e o remédio era se consolar com as lembranças e cuidar de segurar o que restou daquele tempo de fartura, benesses e facilidades.

E a sovina dama, do alto do alpendre, observando cada passo do criado, no que ia ele cumprindo à risca a sua determinação, atirando ao forno cada objeto descartado, mandou-0 imediatamente que poupasse do expurgo os seus antigos calçados, pois aqueles eram como se fossem troféus e resolvera, de supino, a conservá-los. E, num ímpeto de apego àquelas relíquias, juntou-as, sofregamente, e as acondicionou, novamente, dentro de um grande jacá de taquara, do qual pouco antes haviam despejado mais de centena de garrafas vazias.

Eram, contudo, sapatos fora da moda que jamais seriam aproveitados para calçar aqueles seus pés, sempre tão altivos, que tanto já pisaram, no tempo de glórias, na dignidade e no atrevimento de seus desafetos e também naquela gente chinfrim da cidade que ela tanto detestava e tudo fazia para explorar e extorquir.

A antiga arrogância, que também não conseguia lançar ao forno da iniquidade, permitia à megera uma força magnética, como a obrigá-la ao resgate daquele lote de sapatos velhos.

Sentia a necessidade extrema de restaurá-los, dar-lhes novos brilhos aos cabedais, com o reforço de novas graxas. palmilhas, solados e saltos, o que lhe exigiria gastar uma boa grana, se acaso dispusesse de tê-los como novos.

Foi justamente neste momento que lhe ocorreu a ideia de mandá-los ao sapateiro, no que poderia matar dois coelhos com uma única cajadada ou, como era de seu gosto, matar a fome com a vontade de comer: há mais de ano e um dia que um de seus inúmeros locatários, ocupante de um casebre na Rua Direita, ali se instalara com sua tenda de remendão, permanecendo sem pagar o combinado, alegando sempre falta de serviços e faturamento, na tentativa de justificar a contumaz inadimplência, o que de fato era uma realidade da qual ela, como insensível às mazelas sociais, pouco se importava com as razões de quem – de fato - nenhum rendimento auferia naquela praça onde quase toda a população andava com os pés descalços, pouco havendo de se fazer um bom oficial que dependesse do resultado de reformar calçados inexistentes, pois no lugar eram poucos os cidadãos, como seu ilustre cônjuge, que tinha a felicidade de se darem ao luxo de andar com os pés calçados, protegidos naquelas ruas tortas, escuras, sujas e esburacadas.

Contudo, trato é trato, aluguel é aluguel e quem tem casa pra alugar tem por obrigação cobrar o que lhe é devido, nem que seja através de serviços prestados, o que assim estaria de bom tamanho para ambos.

E assim pensado, melhor assim foi que despachou o diligente Zé Melado em direção à tenda do sapateiro, seguindo ao mesmo que ia à frente, trotando como um burro de carga e levando na cacunda o pesado jacá com os ex-preciosos pares de sapatos que um dia desfilaram pelas ruas da cidade despertando a admiração e cobiça dos homens e a inveja das mulheres de pés rachados, as mesmas que, sob a ótica desprezível daquela anta, não mereciam nem mesmo lamber o chão por ande pisavam aqueles soberanos pés.

Foi logo chegando na sala do casebre - misto de residência e tenta de sapateiro -, entrou naquele humilde recinto com ares de proprietária, ordenando ao Zé Melado que despejasse a carga no meio da loja e que o remendão desse início imediato naquele trabalho que ela desejava fosse sem muita demora.

E o pobre do remendão, refeito do susto da visita e diante da proposta, ou melhor, da exigência, avaliou que aquela poderia ser a oportunidade de, além de saudar a dívida da locação imobiliária, também poder tirar algum proveito, mesmo que fosse para a propaganda de seu ofício, na esperança de atrair novos fregueses, pelo que haveria de empregar, naquela tarefa, o máximo de dedicação e arte, tendo para isto que comprar o material necessário e até mesmo contratar auxiliares para dar conta de todo aquele recado.

E o que antes era um marasmo, de repente se transformou numa azáfama de martelos, tenda onde o trabalho nunca terminava, varando pelo dia e atravessando altas horas da noite, vendo-se sempre ali a luz acesa para que o serviço fosse realizado conforme a encomenda, fato que não passou despercebido ao marido da referida senhora, embora lhe fosse desconhecida a causa repentina daquela animação que ali era por todos observada.

Mandou, assim, o ex-prefeito, uma carta de cobrança dos referidos alugueres atrasados que, segundo suas expectativas, poderiam agora, com o positivo faturamento da sapataria, serem finalmente quitados pelo devedor.

- Meu caro amigo Zé Preto (assim dizia a carta de cobrança): Diante do progresso de sua loja, não vejo, no momento, como se negará de pagar-me, enfim, as devidas locações de meu imóvel, o que intimo fazê-lo, sem mais tardar, esperando recebê-lo, incontinente, aqui em meu escritório, para tratarmos sobre os termos de um novo contrato, sob pena de determinar, de imediato, o seu necessário despejo.

Ao que foi providenciada a resposta, pela pena de um advogado amigo do sapateiro, desafeto do coletor, firmada em termos bem peculiares, para que o destinatário observasse, nas entrelinhas, esse particular e se certificasse de que estava bem patrocinado aquele que o cobrador julgava inadimplente:

- Certamente, prezado amigo senhorio e diligente locador, que lhe deveria – veja aí o verbo no modo condicional – e, se fosse o caso, o meu dever seria o de lhe pagar, não fosse já estar empenhada a quitação dos alugueres arguidos, isto em razão do serviço já prestado, por mim, referentes encomenda que foi feita, por ordem de sua respeitável consorte, referentes a 65 pares de sapatos diversos cujo restauro já se encontra executado, estando todos, perfeitos, à sua disposição, posto que tem sido este mister o meu trabalho neste último mês, sempre no intuito de ver quitado, como de fato já o tenho, este que era, até esta data, o nosso compromisso.

O que era determinado pela ex-dama, desde o feliz tempo em que era a primeira-esposa, nunca era ela contestada pelo marido e ele, pacificado e assim conformado, sempre muito cuidadoso para não melindrar-se conjugalmente, temeroso de ferir susceptibilidades em relação a seus segredos de homem galante e aventureiro, não restou alternativa a não ser a de dar-se por satisfeito e deixando como resolvida aquela questão, ao tempo em que, arrefecido o desejo da mulher em ter renovados tantos pares de calçados que lhe seriam supérfluos, também não os foi receber de volta, ignorando-os entre as demais bugigangas do remendão.

Com o passar do tempo Zé Preto viu-se na obrigação de dar destino justo àqueles vistosos sapatos, que em sua vitrine eram cobiçados, mas dos quais não podia se desfazer até que, por considerá-los como finalmente ignorados pela ex-dona, resolveu doá-los a quem os quisesse usar.

Escolheu, então, diferentes e variadas beneficiadas com aqueles mimos e ele próprio fez questão de fazer a entrega, a cada uma delas, como se a generosidade fosse presentes mandados, a cada uma das agraciadas, pelo mulherengo esposo da ex-dama, ao qual nunca antes ocorrera ofertar mimos dessa natureza pela satisfação de suas burlescas e galantes escapadelas.

Chegado o mês de junho, no dia da missa solene da Festa do Rosário, foi com a maior admiração de todos os que estavam no átrio da igreja, aguardando o desfile da procissão solene, que a cidade viu, só que em diferentes pés, aqueles conhecidos sapatos, que antes adornavam os pés mimosos da primeira-dama, agora enfeitando os pés rachados de diferentes e secretos amores do velho alcaide, o qual, sem muito o que fazer, depois se dignou de agradecer ao amigo “Paraná”, seu principal confidente, por aquele admirável gesto de amizade, senso de oportunidade, desprendimento, caridade e bom gosto.

E tudo ficou como dantes, e ninguém mais falou em cobrança de alugueis e resgate de velhos sapatos reformados, naquele antigo sobrado dos Abrantes.

-*-*-*-

Zé Preto Paraná, além de sapateiro, foi também um grande repentista e animador de bailes, nos quais se apresentava faceiro, com seu característico chapéu de feltro verde com uma peninha vermelha presa na fita, com um largo sorriso enfeitado com um enorme dente de ouro, ao ritmo do seu inconfundível pandeiro, cantando sem microfone as suas dolentes rancheiras que enchiam de dengo e encantamentos o Salão de Molas, o “CRIM de Zé Bustika, o carnaval do “Pernil” e os forrós do Clube Popular.

Partiu, desta empreitada terrena, na semana passada, o nosso bom mestre oficial de remendos e forrós. Lá se foi mais uma de nossas figuras populares que se juntam, lá no céu, a tantas outras, como João da Rocha e sua esposa Luzia, Berola, Socorro de Nazaré, Salia de Donata, Zé de Chico Tropeiro, Zezão, Nuninho e sua esposa Lia, Rodolfo Gomes, Zé de Maria Loura, Geraldona, Zé Moreira, Militão, Gabriel Borges, Gentil de Santa, JB Fernandes, Artur Quirino, Plínio Maciel, João Batista Alecrim, Wagner, Sargento Leão e muitos que tanto contribuíram, com a graça do talento e arte musical de alguns e o dom de dançar rodas, mangangás e forrós de muitos foliões, para fazer de nossa terra um lugar QUE ERA tão feliz e agradável de se viver.


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